Princípio da Boa Administração sob a perspetiva europeia e portuguesa
Princípio da Boa Administração sob a perspetiva europeia e portuguesa
Por Danielle Avidago
De
acordo com o artigo 8º/4 da Constituição da República Portuguesa, as nomas e
disposições da União Europeia são diretamente aplicáveis no direito nacional, devendo
ser igualmente respeitadas e aplicada pelos tribunais nacionais. Essa
disposição constitucional deve-se não só ao facto de, como Estado-Membro da
União, termos que respeitar seus Tratados, que exigem a adesão de todas as
normas europeias e a primazia destas sobre as nacionais, nos termos do princípio
do primado, mas também devido ao sistema dualista que Portugal adotou no âmbito
do Direito Internacional. Tal significa que nosso ordenamento jurídico é
amplamente recetivo às normas internacionais adotando-as sem hesitar.
Por
mais que o princípio do primado possa parecer uma forma de opressão da
instituição europeia para com seus Estados Membros, ignorando por completo sua
soberania, a verdade é que o Direito Europeu nada seria sem a autonomia e
peculiaridade jurídica própria de seus Estados Membros, principalmente quando o
assunto é Administração Pública. Sem o direito nacional dos países membros, a
União Europeia não teria direito próprio que regulasse questões
administrativas, sendo estas as que mais têm impacto na vida cotidiana dos
europeus. Ao mesmo tempo, os Estados também não teriam normas que regulassem tão
eficazmente a Administração Publica. O Direito Europeu e o Direito Nacional dos
Estados Membros dependem igualmente uns dos outros[1], não existindo
isoladamente.
No
entanto, o legislador administrativo nacional acabou por ignorar o secular
sistema dualista que Portugal adotou, e quase esqueceu-se de
respeitar um dos princípios mais importantes e estruturantes da Administração
Pública não só nacional como também europeia: o princípio da boa administração.
Consagrado
no artigo 41º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o princípio
da boa administração tem como base levar a Administração Publica a adotar decisões
de forma célebre, eficiente e económica, tendo em atenção o interesse público e
a satisfação das necessidades coletivas. O professor Diogo Freitas do Amaral
defini-o como “o dever de a Administração prosseguir o bem comum da forma mais
eficiente possível”[2].
O professor Mário Aroso de Almeida complementa afirmando que este princípio
deve respeitar os “direitos e interesses legalmente protegidos”[3], sendo um elemento
essencial que se impõe nas modernas sociedades no contexto do Estado de Direito
Democrático, emergente das duas guerras mundiais.
É
possível dizer que a boa administração constitui padrões jurídicos e não jurídicos,
sendo os primeiros encontrados nos princípios fundamentais que se impõe à
administração publica como o principio da igualdade, da proporcionalidade,
direito a notificação da decisão e entre outros presentes, direta ou
indiretamente, na nossa Constituição; enquanto os padrões não jurídicos enquadram-se
na acessibilidade, continuidade e flexibilidade nos serviços públicos, a qualidade
da regulamentação e outros fatores que podem ser deduzidos das recomendações e
resoluções do Conselho da Europa.[4]
Este
princípio inclui, ainda, o princípio da audiência e da participação, o direito
à informação, o princípio da fundamentação[5], e o princípio da
administração equitativa. A adição da boa administração a um diploma específico
em direitos fundamentais o enquadra como tal, não sendo apenas um instrumento
da administração publica, mas também um direito fundamental dos cidadãos europeus[6].
A
União Europeia possui ainda um mecanismo que recebe queixas dos cidadãos
europeus em casos de má administração nas atividades das instituições e agências
da União, chamado de Ombudsman, sendo um grande sucesso do Bloco e visto também
como uma fonte de normas administrativas. Previsto no artigo 43º da CDFUE, o
Ombudsman é chamado a atuar com regularidade à luz do direito fundamental da
boa administração[7].
Sendo
este princípio presente em um dos elementos da, chamada por alguns, Constituição
Material da União Europeia[8], desde 2000, dir-se-ia que
Portugal também tem em seu ordenamento jurídico uma norma que abraça esse
princípio estruturante. No entanto, foi apenas com as revisões que o Código do
Procedimento Administrativo sofreu, em 2015, que o princípio da boa
administração foi consagrado no artigo 5º/1 e devidamente introduzido em nosso
sistema jurídico, dando mais importância aos padrões não jurídicos do princípio,
contrariamente à abordagem europeia. Significando que Portugal passou 15 anos
sem abarcar, nem no principal diploma que regula toda a atividade relacionada
com a Administração Publica, nem em sua Constituição, um dos princípios mais
importantes desse ramo do direito.
Não
obstante este “lapso” do legislador administrativo, há ainda autores, como o
Professor Freitas do Amaral, que colocam esse princípio, tardiamente adicionado
à ordem jurídica portuguesa, em um patamar diferente dos outros princípios
administrativos, classificando-o como facultativo e alegando ser um dever
jurídico imperfeito. Sobre essa problemática, o professor Vasco Pereira da
Silva acredita ser uma posição inadmissível, considerando que não existem
princípios não obrigatórios e a sua suposta imperfeição jurídica não tem
fundamento na lei. Levando em consideração ainda que o poder discricionário da
Administração Publica é limitado pelos princípios administrativos e o respeito
pelos direitos fundamentais[9]. O Professor afirma ainda
que tal conceção acerca do princípio aqui sob analise advém dos “traumas da
infância difícil da administração nacional e europeia”[10], onde receava-se a
legalidade administrativa.
Ainda
temos a posição do professor Mário Aroso de Almeida quanto a perspetiva
europeia do princípio da boa administração, alegando que enquadra-lo como um
direito não é adequado, na medida em que parece conglobar num único direito,
diferentes direitos e garantias dos particulares perante a Administração. Afirma
ainda que a abordagem europeia é uma utilização inadequada do conceito de boa administração,
não sendo viável traduzir todas as valências que esse princípio visa satisfazer
em direitos subjetivos, já que não é um valor passível de ser subjetivado[11].
Concedemos
a vénia aos professores Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso Almeida, no entanto,
devemos concordar com o professor Vasco Pereira da Silva quando afirma que
ambas as posições são “inadmissíveis”.
A
verdade é que, independente do posicionamento dos professores doutores, o facto
é que o princípio da administração publica é um direito fundamental dos
cidadãos europeus, e sendo todo nacional de um estado-membro da UE um cidadão
europeu, a luz do artigo 20º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia,
se um cidadão português vê seu direito a boa administração negado, pode
recorrer a tribunal com base na violação de um direito fundamental que possui. Portanto,
é recomendável que o aplicador administrativo pense duas vezes antes de
“escolher” não aplicar o princípio da boa administração ou sequer desconsiderá-lo
como um direito fundamental.
Bibliografia:
AMARAL, Diogo Freitas;
Curso de Direito Administrativo, Volume II; Almedina; 4ª edição; 2018.
ALMEIDA, Mário Aroso;
Teoria Geral do Direito Administrativo; Almedina; 3ª edição; 2016.
MENDONÇA, Suzana Marta
Fernandes; A Boa Administração como Direito Fundamental; Dissertação de
Mestrado; 2019.
CRAIG, Paul and BÚRCA, Gráinne; EU Law, Text, Cases, and Materials; 7th
edition; 2020.
[1] Para um aprofundamento da relação entre o Direito Europeu e o Direito Nacional, ver https://sub12adm.blogspot.com/2021/11/direito-europeu-e-direito.html
[4] A título
de exemplo, temos a Recomendação CM/Rec (2007)7, adotada pelo Conselho de
Ministros do Conselho da Europa em 20 de junho de 2007.
[5] O Professor
Vasco Pereira da Silva classifica este princípio como uma “medida de higiene administrativa”
- Aula teórica de 23 de março de 2022.
[6] MENDONÇA, Suzana Marta Fernandes; A Boa Administração
como Direito Fundamental; Dissertação de Mestrado; 2019.
[7] CRAIG,
Paul and BÚRCA, Gráinne; EU Law, Text, Cases, and Materials; 7th
edition; 2020 – tradução livre
[8] O
Professor Vasco Pereira da Silva acredita que a União Europeia possui elementos
suficientes para afirmar que esta possui uma Constituição material na medida em
que, a luz do princípio da subsidiariedade, há divisão de poderes e a Carta
aqui sob analise regula os direitos dos cidadãos europeus - Aula teórica de 7
de março de 2022.
[9]
CARVALHO FILHO, José dos Santos; Manual de Direito Administrativo, 30ª
ed., Atlas, São
Paulo, 2016, p. 112.
[10] Aula
teórica de 23 de março de 2022.
[11] ALMEIDA;
Teoria; p. 63
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