Direito Europeu e Direito Administrativo: um par inseparável

 Danielle Avidago, nº 65019

    Como um dos ramos do direito cujo crescimento (usando aqui a abordagem inovadora do Professor Vasco Pereira da Silva ao personalizar as materias a que se retrata) foi mais atribulado e conturbado, o Direito Administrativo Português passou por uma série de fases, normais para o bom desenvolvimento do mesmo, eu diria, até chegar ao que é hoje. Desde seu passado revoltado e autoritário, característicos do período correspondente à instauração do liberalismo político; até os dias de hoje, com uma acentuação da dimensão subjectiva, destinada à protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares, relacionada ainda com a autonomização através da Constituição de 1976 dos tribunais administrativos no poder judicial, facto encontrado nos artigos 202°, 209°e 212° do diploma em causa. Mas o crédito por tal evolução não deve ser atribuído apenas ao legislador português, mas também ao Direito Europeu.

    A partir do final do século XX e inícios do século XXI, verificamos o surgimento de um Direito Europeu do Contencioso Administrativo, que tem como objetivo a concretização e regulação  de políticas públicas, vindo a superar divergências históricas entre os ordenamentos jurídicos dos países membros e convergir para um “modelo comum europeu”. Modelo esse que atualmente chamamos de Direito Comum.

    Mas nem sempre foi assim. De acordo com Sabino Caesse, a ideia dos fundadores da Comunidade europeia era a de instituir um ordenamento jurídico supranacional que se sobrepusesse ao dos Estados, mas que não interferisse com as administrações dos mesmos. No entanto, tal ideia é logo alterada em razão do alargamento das tarefas administrativas comunitárias e da necessidade da sua maior eficácia, conduzindo à actual integração das administrações nacionais com a administração comunitária, ou seja, à criação do Direito Comum.

    No entanto, assim como a evolução do Direito Administrativo Português não se deve apenas ao processo da Constitucionalização, em que se generaliza a elevação a nível constitucional dessa dupla dimensão jurisdicional e subjectiva, mas também à Europeização, fenômeno supracitado; o desenvolvimento do Direito Administrativo Europeu também teve como impulsionador o próprio Direito Administrativo nacional dos Estados Membros. Essa chamada dupla dependência do Direito Administrativo Nacional e Administrativo Europeu deve-se ao facto de que, por um lado, as normas e disposições administrativas provenientes dos órgãos europeus devem ser concretizados no ordenamento jurídico de cada Membro, por força do princípio (polêmico, devido a sua possível inclusão implícita no Tratado de Lisboa, vulgo Constituição material europeia, como assim acredita, e concedo a venia, o Professor Vasco Pereira da Silva) do primado do direito europeu, encontrado no nosso ordenamento jurídico no artigo 8ª/4 da Constituição da República Portuguesa; e por outro lado, a concessão de que a administração pública de cada país membro é também a responsável por compor a Administração Europeia. Assim, as administrações dos Estados- membros são transformadas em administrações europeias e vice-versa, as adnministrações europeias são integradas nas administrações nacionais. Uma verdadeira, profunda e íntima relação mútua entre o Direito Administrativo Nacional e Europeu. Casal esse que tem se ajudou mutuamente a crescer e se desenvolver, transformando-se no importante ramo do direito que é hoje.

    Como todo relacionamento, este também é baseado em princípios que fazem com que a relação perdure e se mantenha saudável. Além do principio do primado do direito europeu supramencionado, temos, de acordo mais uma vez com Sabino Caesse, o princípio da integração normativa, baseando-se na ideia de que as administrações nacionais, com base na concepção monística da integração normativa, aplicam quer o direito administrativo nacional quer o direito administrativo comunitário, disposição essa encontrada implicitamente no artigo 8º/1 da CRP, uma clausula geral de recessão plena.  Já o princípio da proibição de discriminação entre sujeitos nacionais e de outros Estados-membros é o responsável pela existência da liberdade de circulação de pessoas, de mercadorias, de serviços e de capitais, tão característica da UE. Como 3º pilar de um relacionamento saudável, temos o princípio da cooperação, elencado no artigo 10° do Tratado de Lisboa,  incluindo nele, entre outros, o dever das administrações nacionais consultarem a Comissão, o dever de fornecer informações e o dever de cooperar com a Administração de outros Estados. O princípio da subsidiariedade também é de extrema importância na medida em que abriga não só a distribuição de poderes, mas também de regulação do exercício desses poderes. É com a conjugação de todos esses princípios e valores subjugados que a União Europeia, em sua vertente administrativa, se mantém firme com o direito administrativo dos países membros.

    A união desse par, agora inseparável, levou, portanto, ao nascimento de uma verdadeira ordem jurídica própria e comum, que resulta da conjugação de fontes comunitárias com fontes nacionais. Atualmente, se não todo, a grande maioria das diretivas e regulamentos, sendo as primeiras entendidas como transposições sucetíveis de adaptação pelos Estados Membros e as segundas caracterizadas por serem diretamente aplicáveis, provenientes dos órgãos e instituições competentes da União, são de matéria administrativa. Seguindo o raciocínio de Jurgen Schwarze, a União Europeia pode ser considerada como uma comunidade de Direito Administrativo, visto que os respectivos objectivos e tarefas são, em grande medida, de natureza administrativa tanto em sentido material, concretizando políticas públicas europeias, como orgânico, sendo as administrações europeias que desempenham essa função.

    Em conclusão, hoje em dia já não é mais possível desassociar o direito administrativo europeu do nacional. Agora são 1. Sua união e respeito mútuo baseados em princípios e valores basilares, levaram à procriação de uma ordem jurídica própria, que revolucionou o direito administrativo como um todo, desvinculando-o do Estado e de seu inicial caracter autoritário. O Direito Comum é a realidade que diferencia a União Europeia de todo e qualquer bloco, assim como sua lógica integradora baseada no diálogo entre os seus 27 Estados membros. Esse é o segredo da União.

 

 

Bibliografia:

 DA SILVA, Vasco Pereira e SARLET, Ingo Wolfang; Direito Público Sem Fronteiras; Instituto de Ciências Jurídico-Políticas; Lisboa, 4 de Abril de 2011

 DA SILVA, Vasco Pereira; O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise; Almedina, 2ª edição; Lisboa, 30 de Janeiro de 2008


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