Princípio da audiência dos interessados, art. 121º e ss. do CPA e análise ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

Princípio da audiência prévia:

O procedimento administrativo encontra-se, segundo o Professor Digo Freitas do Amaral, dividido em 6 fases: fase inicial, fase da instrução, fase da audiência dos interessados, fase da preparação da decisão, fase da decisão e fase complementar[1]. Já o Professor Jorge Pação, assim como o Professor Mário Aroso de Almeida e a Professora Isa António[2], defende a seguinte divisão: fase da iniciativa, fase preparatória/instrutória, a fase da audiência prévia, fase constitutiva/resolutória e, por fim, fase complementar/integrativa. [3]

Para efeitos de análise do acórdão importa fazer referência à fase da audiência dos interessados e compreender como é que ele opera, quando é que pode ser dispensado e em que termos e qual a consequência jurídica da sua violação.

O princípio da audiência prévia implica que a administração deve permitir que os interessados tenham uma posição ativa durante todo o procedimento administrativo, dentro do possível, sendo o seu grande objetivo influenciar a tomada de decisão da Administração a favor do particular.

Este princípio integra-se na fase da audiência dos interessados, prevista nos artigos 121º e seguintes do CPA, e é a expressão de dois princípios explanados no CPA: o princípio da colaboração da Administração com os particulares, previsto no artigo 11º/1, e o princípio da participação, vertido no artigo 12º. Importa referir que este princípio é um reflexo do princípio da democracia participativa, que tem consagração constitucional no artigo 2º, para além da menção feita no artigo 267º/5 da CRP. Podemos ainda salientar que, de entre outras coisas, este princípio é uma exteriorização de uma das três grandes funções do procedimento administrativo: a função da concertação.[4]

O princípio da audiência dos interessados afigura-se preponderante, não só porque o procedimento tem em vista a tomada de uma decisão concreta e individual e, por isso faz todo o sentido que aqueles que possam ver os seus direitos ou interesses prejudicados possam ser ouvidos, mas também porque, caso os particulares não fossem ouvidos e notificados, não poderiam contra-argumentar. Nesta hipótese, a Administração decidia sozinha, o particular era notificado quanto à decisão quando a mesma já estava tomada.

Tem sido discutido qual o conteúdo do direito da audiência prévia, ou seja, o particular é chamado a pronunciar-se sobre a questão a decidir ou deve ser informado do sentido provável da decisão administrativa e das razões dessa decisão. Ora, entende o Professor Diogo Freitas do Amaral e o Professor Vasco Pereira da Silva, que, e de acordo com o artigo 122º/2, existe, por parte da Administração Pública, o dever de notificar os interessados onde apresentam “o projeto de decisão e demais elementos necessários para que os interessados possam conhecer todos os aspetos relevantes para a decisão, em matéria de facto e de direito”.

A audiência prévia dos interessados pode ser dispensada pelo diretor do procedimento nas situações previstas no artigo 124º/1 do CPA. Caso ocorra a dispensa, de acordo com o artigo 124º/2, a Administração tem de apresentar as razões que, no caso concreto, levaram a que a audiência não se realizasse.

O Professor Vasco Pereira da Silva entende que do CPA se extrai uma exigência de “tripla fundamentação”, porque a Administração tem de fundamentar o seu projeto de decisão, caso afaste a audiência prévia, existe um dever de fundamentação e, tem que fundamentar qual o motivo que a leva a não atender as razões invocadas pelo particular.

Encontra-se, por fim, consagrado um princípio da dupla decisão: a Administração Pública tem de elaborar um “projeto de decisão” fundamentado, e, só depois, é que toma a decisão final.

Análise ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:

Por deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura, de agora em diante “CSM”, a 6 de junho de 2017 determinou-se um desconto na antiguidade do recorrente “A”. Após a deliberação, “A” interpôs recurso para o STJ, que julgou, a 1 de junho de 2018, procedente o recurso, declarando a anulação da deliberação acima referida por caducidade do procedimento administrativo.

Na sequência desta decisão, a Divisão dos Serviços de Quadro e Movimentos Judiciais do CSM elaborou um despacho, com a concordância do Senhor Juiz Secretário do CSM e do Senhor Vice-Presidente do CSM, com o seguinte teor (resumidamente):

- a definição da antiguidade é muito relevante para efeitos de graduação do magistrado em causa

- “Os juízes concorrentes aos movimentos judiciais são graduados para este efeito com base na sua antiguidade e mérito (…)”; a antiguidade em causa é aderida com base na última lista de antiguidade aprovado, que data a 31 de dezembro de 2017, período em que o Juiz “A” ainda se encontrava com licença sem remuneração e, por isso, não integrou a ordenação

- Necessidade de um novo procedimento em que se defina a antiguidade do referido juiz para efeitos de graduação que se reporte à data de 31 de dezembro de 2017

- Art. 74º/a) do EMJ: determina que os períodos de gozo das licenças de longa duração não contam para efeitos de antiguidade;

O referido despacho foi enviado ao Reclamante a 11 de junho de 2018, que procedeu a uma reclamação a 10 de julho de 2018 por a decisão padecer de invalidade por não ter ocorrido audiência prévia.

A Reclamação, prevista nos artigos 191º a 194º do CPA, é uma expressão das garantias impugnatórias, ou seja, é um meio de impugnação de um ato administrativo, neste caso, a fixação da antiguidade, perante o seu próprio autor, a CSM.

Entende o demandante que existiu uma violação ao princípio da audiência prévia porque nunca lhe foi dada oportunidade para se pronunciar quanto ao procedimento administrativo que tinha por objeto a fixação da sua antiguidade para efeitos do movimento judicial ordinário de 2018, de acordo com o artigo 121º/1 do CPA, bem como, visto a não realização da audiência prévia, não constava nenhuma fundamentação quanto à dispensa da mesma, o que é exigido pelo artigo 121º/2, do CPA.

No entanto, o Plenário do CSM deliberou por unanimidade considerando improcedente a reclamação, porque não se estava perante uma decisão final, ou seja, de uma decisão definitiva (“Ora, não é este o caso, pois, não estamos perante uma decisão final.”)

Decisão do Supremo Tribunal:

Entende o Supremo Tribunal de Justiça não concordar com o entendimento de que o despacho do Vice-Presidente do CSM não era uma decisão final, pois ele toma uma decisão concreta que se dirige ao reclamante, o juiz “A”, decisão esta que produz efeitos direta e imediatamente na sua esfera jurídica. Isto ainda que a definição de antiguidade se limite a produzir efeitos quanto ao movimento judicial ordinário de 2018.

Mas, ainda que a decisão não fosse final, entende o STJ, que se o impugnante não tivesse reclamado, a decisão tornar-se-ia definita e não impugnável.

Assim sendo, estávamos perante dois procedimentos administrativos. O procedimento administrativo que se refere à decisão do Vice-presidente do CSM que fixa a antiguidade do juiz é um procedimento de 1º grau, pois estamos perante a prática de um ato primário. Já o procedimento que diz respeito à reclamação, este é um procedimento de 2º grau, pois visa a prática de um ato secundário.

Ora, relativamente ao procedimento de 1º grau, é claro que o Vice-Presidente do CSM proferiu uma decisão final, sem notificar o interessado, o “A”, para que este pudesse exercer o direito de se pronunciar sobre as questões com interesse para a decisão, não estando presente nenhum caso de dispensa.

Conclui-se assim que foi violado o princípio de audiência prévia, previsto no artigo 121º e 124º do CPA.

Quais os efeitos da audiência prévia?

O Supremo Tribunal de Justiça, neste caso, pronunciou-se pela anulabilidade e, portanto seria aplicável o artigo 163º do CPA.

Não obstante esta decisão do Tribunal de Justiça, a problemática não é tão linear assim, pois tem sido muito discutida na nossa doutrina: a maioria da doutrina, nomeadamente o Professor Diogo Freitas do Amaral e o Professor João Caupers[5], e jurisprudência concorda com a decisão proferida e, portanto, entende que a consequência do vício é a anulabilidade. Entende o Professor que, como o direito à audiência prévia dos interessados não está incluído no grupo de direitos fundamentais explanados na CRP, então não o podemos considerar como tal. Para este autor, os direitos fundamentais são aqueles que têm uma grande proximidade com a proteção da dignidade da pessoa humana.[6]

Já o Professor Mário Aroso de Almeida tem uma posição singular, porque não contesta que um direito como o da audiência é um direito fundamental formal ou procedimental. Todavia, não concorda que devemos de ver no direito à audiência prévia dos interessados, tal e qual como previsto no CPA, um direito fundamental procedimental ou formal. Esta constatação não invalidade que a não audiência dos interessados viole o “conteúdo essencial de um direito fundamental material dos interessados nos procedimentos em que essa audiência deva ser considerada uma necessidade inelutável da proteção desse direito (…)”.[7]

Contudo, estão não é a posição do Professor Vasco Pereira da Silva, nem da Professora Isa António[8], nem a posição da última decisão do Supremo Tribunal, na medida em que defende que a violação do princípio da audiência prévia gera nulidade na ordem jurídica. Defende o professor que o princípio da audiência prévia é um direito fundamental, que se encontra consagrado no artigo 267º/5 da CRP através do princípio da participação dos particulares na formação das decisões que lhes respeitem, que exige aos órgãos administrativos o dever de estes assegurarem a participação dos particulares na formação das decisões que lhes digam respeito.[9]

O Professor discorda dos argumentos dados pelo Professor Diogo Freitas do Amaral, e defende que a proteção da dignidade da pessoa humana tem de decorrer, não só do Estado enquanto Administração, através da consagração dos direitos económicos e sociais, mas também da consideração do particular como sujeito de direitos nas relações com a Administração. E acrescenta, dizendo que, ainda que não se considerasse o princípio em análise como um direito fundamental, decorre do princípio da dignidade da pessoa humana que todo o procedimento administrativo que tenha de tomar uma decisão administrativa que afete direitos fundamentais, tem de se caracterizar por ser um procedimento participado.

Assim sendo, quando uma decisão administrativa afete, ou possa afetar, um direito fundamental, a decisão tem de ser tomada com base num procedimento participado, em que os interessados são ouvidos e tidos em conta, pelo que a não audiência destes seria uma violação ao direito fundamental. Daqui resulta a nulidade da decisão administrativa.

Bibliografia:

- Aulas teóricas do Professor Vasco Pereira da Silva

- Aulas práticas do Professor Jorge Pação

- FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, II, 4ª ed., Almedina, Coimbra, 2018

- AROSO DE ALMEIDA, Mário, Teoria Geral do Direito administrativo, 2ª ed., Coimbra, Almedina, 2015

- ANTÓNIO, Isa, Manual Teórico-Prático de Direito Administrativo, 3ª ed., Coimbra, Almedina, 2021

- CAUPERS, João, EIRÓ, Vera, Introdução ao Direito Administrativo, 12º ed., Lisboa, Âncora, 2016

- GOMES, Carla Amado, NEVES, Ana Fernanda, SERRÃO, Tiago, Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, I, 4ª ed., Lisboa, AAFDL, 2018

- Link do acórdão: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (dgsi.pt)



[1] D. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, II, 4ª ed., Coimbra, Almedina, 2008, p. 292

[2] Isa António, Manual Teórico-Prático de Direito Administrativo, 3ª ed., Coimbra, Almeida, 2021, pp. 386-387

[3] M. Aroso de Almeida, Teoria Geral do Direito Administrativo, 2ª ed., Coimbra, Almedina, 2015, p. 102

[4] CARLA AMADO GOMES / ANA FERNANDES NEVES / TIAGO SERRÃO, Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, I, 4ª ed., Lisboa, AAFDL, 2018, p. 608

[5] JOÃO CAUPERS / VERA EIRÓ, Introdução ao Direito Administrativo, 12º ed., Lisboa, Âncora, 2016, p. 367

[6] Freitas do Amaral, Curso, II, p. 302

[7] Aroso de Almeida, Teoria, p. 117

[8] Isa António, Manual, p. 393

[9] Freitas do Amaral, Curso, II, p. 287

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