O princípio da cooperação administrativa
O princípio da cooperação administrativa
Sumário: I. Introdução; II. No que consiste o princípio de cooperação? III. O princípio da cooperação na Constituição da República Portuguesa; IV. O princípio da cooperação no Código de Procedimento Administrativo V. Conclusão VI. Bibliografia.
I. Introdução
O Direito Administrativo ao longo do tempo, segundo o Professor Vasco Pereira da Silva[1], deteve uma evolução composta em três fases: 1º fase no período do Estado Liberal caracterizada por este autor como administração agressiva; 2º fase que diz respeito ao Estado Social com a verificação de uma administração prestadora; 3º fase corresponde ao Estado Pós-Social possuidor de uma administração de infraestruturas. Deste modo, a priori a organização administrativa era tendencialmente realizada por relações de supra-ordenação entre os diferentes órgãos, serviços e pessoas coletivas[2] evidenciando o papel relevante da hierarquia, a posteriori verificou-se uma alteração para uma administração pública composta por várias administrações o que demonstra a crescente complexidade existente na estrutura administrativa, sendo necessário princípios que orientem a organização da Administração Pública, dos quais, como iremos ver adiante, o princípio da cooperação. Deste modo, um dos motivos que nos fez escolher a abordagem deste princípio é a sua crescente atualização na administração pública nos dias de hoje, e por outro lado, a ausência de desenvolvimento deste no ensino em detrimento das relações de subordinação como a hierarquia, superintendência e tutela.
II. No que consiste o princípio da cooperação?
O princípio da cooperação, no nosso entendimento, consiste na existência de um vínculo voluntário entre pelo menos duas entidades públicas dotadas de competências e atribuições que pretendem prosseguir objetivos comuns. Assim sendo, há que decompor o conceito para entender realmente no que consiste a cooperação. Seguimos o pensamento de Jorge Pação e Luciano Parejo Alfonso quanto à voluntariedade como característica da noção do princípio da cooperação, a nosso ver isto justifica-se uma vez que só através da livre iniciativa das entidades para realizarem uma atuação conjunta é que poderá haver verdadeira cooperação. Em sentido contrário teremos a posição de Rui Lanceiro do qual defende a existência de cooperação não voluntária enquadrando nesta a cooperação orgânica e procedimental[3]. Relativamente ao limite mínimo de "duas entidades públicas" será de notar que não é possível a cooperação de forma isolada, deste modo poderemos verificar a presença de uma cooperação intersubjetiva (órgãos ou serviços de diferentes pessoas coletivas) e intrasubjetiva (órgãos ou serviços da mesma pessoa coletiva). Relativamente à característica de ambas as entidades serem detentoras de atribuições e competências , teremos de realizar primeiramente uma distinção entre estas. As atribuições dizem respeito aos fins ou interesses que a lei incumbe às pessoas coletivas públicas de prosseguir[4], já as competências caracterizam-se por ser um conjunto de poderes funcionais que a lei confere para a prossecução das atribuições das pessoas coletivas públicas[5]. Assim sendo, seguimos o pensamento de Alexandra Leitão[6] afirmando que a cooperação agirá aqui para impedir possíveis conflitos entre as entidades que possuem a mesma competência ou atribuição.
Deste modo, pretendemos esclarecer que estamos perante uma situação tendencialmente paritária[7], o que evidencia a presença de uma igualdade jurídica dos cooperantes[8]. Excluímos, tal como realiza Rui Lanceiro, as relações presentes na alínea d) do artigo 199.º da Constituição da República Portuguesa «doravante “CRP”», ou seja, hierarquia, superintendência e tutela.
Relativamente aos tipos de cooperação, o Professor Rui Lanceiro faz menção a dois critérios relevantes para a conceção de diferentes tipos de cooperação. O primeiro critério rege-se pela presença ou ausência de voluntariedade na cooperação[9]. Se estivermos a falar de presença então estamos perante a cooperação convencional que se realiza com a celebração de contratos interadministrativos, que se estabelecem ou regulam as relações de cooperação[10]. Já se estivermos perante a ausência de voluntariedade poderemos, segundo este autor, falar de cooperação orgânica[11] e cooperação procedimental[12]. O segundo critério diz respeito à possível aplicação do princípio de cooperação a entidades com níveis distintos. Assim sendo teremos a cooperação vertical que corresponde às relações entre entidades de níveis diferentes, como por exemplo a relação entre o Estado e as autarquias locais. Dentro desta cooperação podemos ainda distinguir entre cooperação ascendente e descendente. A primeira diz respeito às entidades que se posicionam num nível inferior para com as de nível superior, as segundas, o inverso[13]. Por outro lado, teremos a cooperação horizontal que corresponde às relações entre entidades que pertencem ao mesmo nível, tal como ocorre na relação entre as regiões autónomas entre si.
III. O princípio da cooperação na Constituição da República Portuguesa
É verdade que a CRP não menciona explicitamente o princípio da cooperação, no entanto, segundo diversos autores[14] será possível obter a formulação do princípio através da verificação de existência de regras[15] jurídicas de nível constitucional que consagram formas de cooperação administrativa. Quais são essas regras constitucionais?
- N.º 4 do artigo 23.º da CRP que estabelece a cooperação entre os órgãos e agentes da administração com o Provedor de Justiça.
- Alínea u) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP existente entre as regiões autónomas e entidades regionais estrangeiras.
- N.º 1 do artigo 229.º da CRP em que há um dever de cooperação entre o Estado e as Regiões Autónomas para o desenvolvimento econômico e social destas últimas.
- N.º 4 do artigo 229.º que determina a existência de cooperação entre o Governo da República e os Governos Regionais.
- N.º 3 do artigo 237.º quanto à cooperação entre os polícias municipais.
Além do supra mencionado será possível extrair de algumas regras a menção de colaboração entre entidades públicas no exercício da função administrativa implicando também a cooperação, sendo essas as seguintes: alínea b) do n.º 1 do artigo 65.º da CRP ; n.º 2 do artigo 66.º da CRP; n.º 3 do artigo 70.º da CRP; e o n.º 2 do artigo 79.º da CRP .
Saliente-se que poderemos verificar a existência de princípios consagrados na nossa Lei Fundamental quanto à Administração Pública sendo possível extrair o princípio da cooperação administrativa. Este princípio decorre das seguintes vertentes: prossecução do interesse público; imparcialidade; segurança jurídica; e a tutela da confiança dos particulares na atuação das entidades administrativas. Relativamente ao princípio da prossecução do interesse público (n.º 1 do artigo 226.º da CRP), Rui Lanceiro menciona que a Administração Pública deve prosseguir os interesses públicos que lhes estão atribuídos de forma coerente e eficaz, não devendo atuar de forma contraditória, sob pena de comprometer a boa administração e o interesse público tomado na sua globalidade[16]. O princípio da imparcialidade (n.º 2 do artigo.º 266 da CRP) consiste na obrigação de ponderação de todos os interesses relevantes pela administração. O princípio da legalidade diz respeito aos limites das suas competências e atribuições. O princípio da tutela da dignidade humana ( artigo 1.º e 2.º da CRP) pois os cidadãos devem poder confiar que a atuação dos diversos órgãos da administração é coerente e que uma decisão da administração será respeitada e não contrariada pela atuação de um outro órgão administrativo[17]. O princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP) em que situações semelhantes ocorridas nos diversos setores de administração terão tratamento idêntico. Também concordamos com a opinião do Professor Paulo Otero[18], que afirma a relevância do princípio da cooperação é relevante pois ajuda a cumprir o princípio da unidade de ação da Administração Pública. Da mesma opinião Pedro Fernández Sánchez, entre outros[19], referem que: todas as situações de repartição de atribuições e de competências administrativas [...] exigem inevitavelmente a criação de formas de colaboração e de cooperação entre entidades administrativas, para garantir a unidade de ação e evitar a ineficácia decorrente da multiplicação dos centros decisórios.
IV. O princípio da cooperação no Código do Procedimento Administrativo
O Código do Procedimento Administrativo «doravante “CPA”» é um diploma relevante para o direito administrativo pelo que, se verificarmos no Capítulo II deste diploma encontramos enunciado os princípios gerais da atividade administrativa. Jorge Pação chega às seguintes três conclusões: 1º Não consta dos artigos enquadrados neste capítulo o princípio de cooperação administrativa; 2º O artigo 11.º do CPA com a epígrafe princípio da colaboração com os particulares têm uma aplicação delimitada às relações entre estas entidades; 3º O artigo 19.º com a epígrafe princípio da cooperação leal com a União Europeia é uma norma especial face ao que seria um princípio geral de cooperação administrativa[20]. Ou seja, sabendo isto, será difícil justificar a inexistência da consagração deste princípio no CPA, o que poderia ser de extrema relevância uma vez que iria colmatar a inexistência de uma disposição constitucional nesse sentido. Também Rui Lanceiro defende a possível extração do princípio da cooperação pela interpretação do CPA caso se entenda, como o fazemos, que este princípio decorre dos outros princípios presentes nos artigos 3.º a 6.º e 9.º a 10.º do CPA. Para além do referido anteriormente, é possível verificar pelo disposto no CPA a importância do princípio de cooperação através do seguinte: o dever de não interferência nas competências legais dos restantes órgãos administrativos (artigo 40.º do CPA); o respeito pelas competências dos órgãos administrativos em causa e os interesses públicos prosseguidos[21] (n.º 1 e 3 do artigo 38.º do CPA); a delegação de poderes considerado por Paulo Otero[22] como um instrumento de cooperação interorgânica ou interpessoal (artigo 44.º do CPA); interpretação ao artigo 60.º do CPA que apesar de este ser dirigido às relações entre a administração e os particulares, Rui Lanceiro[23] realiza uma interpretação dizendo que os órgãos da administração que participem no procedimento estão igualmente sujeitos à necessidade de cooperação.
V. Conclusão
A nosso ver este princípio é de extrema relevância, arriscamo-nos mesmo a mencionar que sem este a Administração Pública seria diferente e a concretização de certos princípios impossível. Deste modo, seguem-se os seguintes argumentos a favor do princípio da cooperação: 1.º Apesar deste não estar consagrado expressamente na CRP, parece-nos que um princípio desta relevância deveria ser protegido pelo nosso texto fundamental, pois sendo a CRP pragmática e prolixa não se entende a ausência deste princípio uma vez que regula tantos outros princípios administrativos de igual ou inferior relevância; 2.º A CRP consagra regras jurídicas que consagram a cooperação administrativa; 3.º São inúmeros os princípios constitucionais que evidenciam a existência de cooperação; e 4.º Também o CPA regula disposições no sentido de sustentar a cooperação administrativa. Não obstante, este princípio facilitará a prossecução do interesse público, sendo esse o objetivo principal da Administração Pública, não havendo como ausentar a sua consagração expressa na Lei Fundamental ou no CPA.
VI. Bibliografia
ALEXANDRA LEITÃO, Contratos Interadministrativos, dissertação de Doutoramento, policopiado, Lisboa, 2010, pp. 84 e 89.
CARLOS BLANCO DE MORAIS, Curso de Direito Constitucional - Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 2018, p. 534.
DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo - Volume I, 4ª edição, Coimbra, Almedina, 2016, pp. 639 e 640.
JORGE PAÇÃO, A cooperação administrativa, in, Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves, Tiago Serrão (coord.) Organização administrativa: novos actores, novos modelos, 1° edição, Alameda da Universidade, AAFDL, 2018, pp. 502 e 504.
PAULO OTERO, Aulas teóricas, novembro de 2021.
PAULO OTERO, A competência delegada no direito administrativo português : conceito, natureza e regime, Lisboa, AAFDL, 1987, pp. 57 a 59.
PEDRO FERNÁNDEZ SÁNCHEZ,ANA CELESTE CARVALHO,LUÍS FÁBRICA,ALEXANDRA LEITÃO,LUÍS VERDE DE SOUSA, RAQUEL CARVALHO, Contratação pública I, 1º edição, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 2017, p. 60.
RUI LANCEIRO, O princípio da cooperação leal no âmbito da administração pública. Em especial as vinculações resultantes do Direito da União Europeia para o procedimento administrativo nacional de prática de acto administrativo, dissertação de Doutoramento, policopiado, Lisboa, 2016, pp. 45; 46; 48; 119; 123; e 126.
VASCO PEREIRA DA SILVA, Aulas teóricas, 6 e 11 de outubro de 2021.
[1]Cfr. VASCO PEREIRA DA SILVA, Aulas teóricas, 6 e 11 de outubro de 2021.
[2]Cfr. JORGE PAÇÃO, A
cooperação administrativa, in, Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves, Tiago
Serrão (coord.) Organização
administrativa: novos actores, novos modelos, 1° edição, Alameda da
Universidade, AAFDL, 2018, p. 502.
[3]Estes tipos de cooperação são abordados adiante.
[4]Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo - Volume I, 4ª edição, Coimbra,
Almedina, 2016, p. 639.
[5]Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo - Volume I, 4ª edição, Coimbra,
Almedina, 2016, p. 640.
[6] Cfr. ALEXANDRA LEITÃO, Contratos Interadministrativos,
dissertação de Doutoramento, policopiado, Lisboa, 2010, pp. 84 e 89.
[7]Cfr. JORGE PAÇÃO, A
cooperação administrativa, in, Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves, Tiago
Serrão (coord.) Organização administrativa:
novos actores, novos modelos, 1° edição, Alameda da Universidade, AAFDL,
2018, p. 504.
[8]Cfr. RUI LANCEIRO, O
princípio da cooperação leal no âmbito da administração pública. Em especial as
vinculações resultantes do Direito da União Europeia para o procedimento
administrativo nacional de prática de acto administrativo, dissertação de
Doutoramento, policopiado, Lisboa, 2016, p. 48.
[9]Não obstante, aceitamos apenas a primeira, seguindo a
opinião de Jorge Pação e de Luciano Parejo Alfonso.
[10]Cfr. RUI LANCEIRO, O
princípio da cooperação leal no âmbito da administração pública. Em especial as
vinculações resultantes do Direito da União Europeia para o procedimento
administrativo nacional de prática de acto administrativo, dissertação de
Doutoramento, policopiado, Lisboa, 2016, p. 45.
[11]Criação de
novos órgãos ou estruturas de cooperação, como empresas públicas ou serviços
públicos partilhados, bem como conferências setoriais. Cfr. RUI LANCEIRO, O
princípio da cooperação leal no âmbito da administração pública. Em especial as
vinculações resultantes do Direito da União Europeia para o procedimento
administrativo nacional de prática de acto administrativo, dissertação de
Doutoramento, policopiado, Lisboa, 2016, pp. 45 a 46.
[12]Faz-se através da lei que estabelece a existência da relação de cooperação através de um
determinado procedimento e o regime legal aplicável. Cfr. RUI LANCEIRO, O princípio da cooperação leal no âmbito da
administração pública. Em especial as vinculações resultantes do Direito da
União Europeia para o procedimento administrativo nacional de prática de acto
administrativo, dissertação de Doutoramento, policopiado, Lisboa, 2016, p.
46.
[13]Não obstante, a cooperação é recíproca e portanto devem ser
acolhidos estes dois tipos de cooperação em conjunto.
[14]Tais como: Jorge Pação, Rui Lanceiro e Alexandra Leitão
(bibliografia anteriormente citada).
[15]Relembramos que regras e princípios, apesar de serem ambas
normas, são diferentes, sendo as primeiras caracterizadas por imporem condutas minimamente definidas e
determináveis que devem ser seguidas.
Relativamente aos princípios, estes carecem
de conteúdo determinado, fixando fins que devem ser alcançados em razão de circunstâncias. Cfr. CARLOS
BLANCO DE MORAIS, Curso de Direito Constitucional - Teoria da Constituição,
Coimbra, Almedina, 2018, p. 534.
[16]Cfr. RUI LANCEIRO, O
princípio da cooperação leal no âmbito da administração pública. Em especial as
vinculações resultantes do Direito da União Europeia para o procedimento
administrativo nacional de prática de acto administrativo, dissertação de
Doutoramento, policopiado, Lisboa, 2016, p. 119.
[17]Cfr. RUI LANCEIRO, O
princípio da cooperação leal no âmbito da administração pública. Em especial as
vinculações resultantes do Direito da União Europeia para o procedimento
administrativo nacional de prática de acto administrativo, dissertação de
Doutoramento, policopiado, Lisboa, 2016, p. 119.
[18]Cfr. PAULO OTERO, Aulas
teóricas, novembro de 2021.
[19]Cfr. PEDRO FERNÁNDEZ SÁNCHEZ,ANA CELESTE CARVALHO,LUÍS
FÁBRICA,ALEXANDRA LEITÃO,LUÍS VERDE DE SOUSA, RAQUEL CARVALHO, Contratação pública I, 1º edição,
Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2017, p. 60.
[20]Pelo que tivemos oportunidade de conhecer, a posição do
Professor Vasco Pereira da Silva consiste na aceitação não de um princípio de
cooperação da administração pública na generalidade mas sim o consagrado no art.º 19 do CPA.
[21]Cfr. RUI LANCEIRO, O
princípio da cooperação leal no âmbito da administração pública. Em especial as
vinculações resultantes do Direito da União Europeia para o procedimento
administrativo nacional de prática de acto administrativo, dissertação de
Doutoramento, policopiado, Lisboa, 2016, p. 123.
[22]Cfr. PAULO OTERO, A
competência delegada no direito administrativo português : conceito, natureza e
regime, Lisboa, AAFDL, 1987, pp. 57 a 59.
[23]Cfr. RUI LANCEIRO, O
princípio da cooperação leal no âmbito da administração pública. Em especial as
vinculações resultantes do Direito da União Europeia para o procedimento
administrativo nacional de prática de acto administrativo, dissertação de
Doutoramento, policopiado, Lisboa, 2016, p. 126.
Sandra Messias, n.º 64839.
Comentários
Enviar um comentário