A Prossecução do Interesse Público

 

A Prossecução do Interesse Público e a Administração Pública

 

Como sabemos, as revisões constitucionais trouxeram consigo o alargamento de alguns princípios estruturantes à atuação do Estado Democrático, vinculando consequentemente a Administração Pública. Um dos exemplos coloca-nos frente a frente com o Princípio da Prossecução do Interesse Público, previsto no art.266º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP)[1] e no art.4º do Código de Procedimento administrativo (doravante CPA).[2] Constitui assim não uma “exigência implícita do nosso direito administrativo, mas uma dimensão normativa expressa.”[3] Sérvulo Correia indica ainda que “trata-se de um imperativo indissociavelmente ligado à lógica do fenómeno estadual.”[4]

Surgem algumas discussões respeitantes ao próprio sentido da expressão “interesse público”. Efetivamente, a constante evolução social e diferentes circunstâncias históricas impedem a atribuição de um significado estanque a este interesse, assinalando-se ainda que o mesmo, inserido na democracia pluralista, “não é um dado a priori, mas resulta duma mediação ex post, nas concretas situações, de atores públicos e sociais.”[5] Jorge Bonito sintetiza este princípio, explicitando que este encontra-se “dependente das evoluções técnicas e tecnológicas, assim como das mentalidades, dos próprios costumes da coletividade e, portanto, do momento político em que se vive.”[6]

Apesar desta dificuldade em a definir de forma concreta, a noção de interesse público apresenta-se como fulcral, sendo “teórica e praticamente indispensável ao direito administrativo,” pois a total fusão entre os interesses públicos e os interesses privados resultaria na dispensa do direito administrativo, assumindo-se como suficiente o direito privado geral.[7]  

No que é respeitante à relação entre a prossecução do interesse público e a Administração Pública, aponta Diogo Freitas do Amaral, corroborado pelo Professor Vasco Pereira da Silva, que “A Administração existe, atua, e funciona para prosseguir o interesse público. O interesse público é o seu único fim.”[8]  Bernardo Diniz de Ayala acrescenta que “a prossecução do interesse público é o fim último de qualquer ato da Administração; mais, é o fim último da própria função administrativa e. mesmo, dos outros poderes do Estado.”[9]

Estamos, assim, perante uma situação de invalidade a cada vez que a Administração prossiga interesses alheios ao interesse público. Se, por outro lado, a prossecução de determinado interesse público compete a um órgão distinto, encontramo-nos perante um vício de incompetência. Considera-se ainda a situação de desvio de poder, que “pode corresponder à prossecução de outro interesse público concreto, que não o previsto na lei, ou à realização de interesse privado culminando na prática de crime de corrupção, no caso de ser acompanhado de vantagens, materiais ou imateriais, para o infrator.”[10] Quanto a esta, vale atentar ao artigo 7º, n.º1 do CPA, que indica que Na prossecução do interesse público, a Administração Pública deve adotar os comportamentos adequados aos fins prosseguidos.Desta forma, o desvio de poder resulta na nulidade do ato, por aplicação do art.161º n.º2 alínea e).[11]

Sérvulo Correia reforça a ideia de que “a essência bipolar do Direito Administrativo estrutura-se sobre a permanente busca de compatibilidade entre o exercício eficiente do poder na prossecução do interesse público e a contenção desse poder graças ao respeito dos direitos e interesses legalmente protegidos.” [12] Considera-se assim que o interesse público surge enquanto um limite substancial à atividade administrativa “de modo positivo quando impõe a obrigatoriedade da sua prossecução e, negativamente, quando determina que aquele encontra o seu próprio limite nos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, que em virtude da sua universalidade, nunca poderão por este ser reduzidos.”[13]

Repara-se deste modo que embora se salvaguarde a relevância deste princípio na atuação administrativa, tanto que é responsável por a vincular, esta não pode efetivar a sua prossecução de forma ilimitada. Por este motivo, este princípio não se deve traduzir diretamente na colocação em causa de direitos dos particulares, visto que se zela sempre pelo respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Assim, deverá ser feita uma cuidada ponderação do interesse público enquanto fundamento de determinada medida, tendo-se especial atenção ao interesse privado que esta vai afetar. Relevam assim determinados limites e a concordância com determinados valores para a consagração de alguma limitação a este princípio. No entanto, é de ressalvar que o sustento da democracia passa pelo reconhecimento de que não estamos mais perante um plano de igualdade de posições – como no direito privado – mas antes na superioridade dos interesses públicos enquanto “bens jurídicos referenciados como necessidades sociais publicamente desempenhadas”[14] em relação aos interesses privados.

Como aponta Marcelo Rebelo de Sousa, a prossecução do interesse público “não deve anteceder o princípio da legalidade, pois este é o que define o interesse público concreto em cada circunstância relevante.”[15] O princípio da legalidade surge assim como uma limitação, subordinando a Administração à lei - que define o interesse coletivo concreto com recurso a conceitos indeterminados. A definição e fixação dos interesses públicos cabe ao legislador democrático, e embora os órgãos administrativos sejam os elementos principais na asseguração da sua concretização, não se têm por afastados os particulares, que podem proceder à impugnação dos atos ou “despoletar o exercício de poderes de intervenção interorgânicos ou intersubjetivos.[16] Sobre este aspeto, Nuno Albuquerque Sousa refere que “no Estado de direito democrático, o legislador tem uma “prerrogativa” definitória dos interesses públicos, mas em “concertação” com a Administração e os particulares.”[17]

Ainda relativamente ao princípio da legalidade, indicam João Caupers e Vera Eiró que “outrora, quando a administração pública era escassamente interventora e principalmente ablativa, o equilíbrio entre interesses públicos e interesses privados era conseguido através do princípio da legalidade”, porém, na atualidade, resulta da alargada intervenção pública na vida social uma insuficiência no garante desse equilíbrio pelo referido princípio. O equilíbrio vê-se antes assegurado pelo dever de fundamentação do ato administrativo, o princípio da proporcionalidade, a tutela jurisdicional cautelar e o provedor de justiça.[18]

Para além do princípio da legalidade, podemos apontar o dever da boa administração – previsto no art.5º do CPA[19]- como guia que orienta a prossecução do interesse público, nomeadamente nos casos em que se verifica a existência, por parte da Administração, de discricionariedade para decidir qual a melhor opção, atentando a critérios técnicos e financeiros, para o caso concreto. Neste aspeto, o Acórdão do Tribunal Administrativo de 18 de março de 1999[20] explicita que “a discricionariedade não se traduz na “escolha livre” pela Administração de uma qualquer de entre várias soluções “indiferentemente admissíveis”, mas antes na escolha, de entre as várias soluções que a lei abstratamente previu, daquela que substancia, no caso concreto, a melhor e mais oportuna solução jurídica do ponto de vista do interesse público.” Assim, “a determinação pelo legislador dos interesses públicos é concretizada e mediada pela administração nos casos da discricionariedade ou, em geral, pelos tribunais no respetivo controlo, ou pelos particulares procedimentalmente interessados,” sendo que esta mediação pode ser posteriormente corrigida pela mediação jurisdicional de controlo, cabendo ao tribunal administrativo o controlo da aplicação deste conceito jurídico com elevado grau de indeterminação. [21]

Apesar da importância dada à prossecução do interesse público, não é necessariamente avaliada a maneira como esta é feita, mas antes somente verificado se o interesse público está a ser prosseguido. Remetendo novamente para a discricionariedade acima abordada, a verdade é que mesmo caso não seja adotada a melhor opção, não estamos perante nenhuma situação de ilegalidade. Nestes casos, a desconformidade com as regras de boa administração não pode ser controlada judicialmente, por estarem potencialmente em causa vícios (invalidantes) de mérito. Recai então a apreciação dos mesmos à própria Administração, que exerce posteriormente o seu controlo recorrendo à “revogação, modificação ou substituição de atos ou regulamentos violadores do dever pelos órgãos competentes.”[22]

Em suma, a prossecução do interesse público assume-se enquanto “eixo agregador e heterodeterminante fundamental da Administração Pública, não lhe cabendo qualquer papel na escolha dos interesses públicos a prosseguir,” sendo esta uma “finalidade democrática e teleológica” essencial no Estado de Direito.[23] Caracteriza-se, assim, como elemento essencial à atividade administrativa, guiando o caminho a dever ser adotado na preponderância dos interesses da Administração, que tem legitimidade para interpretar a lei – única que pode definir quais os interesses públicos – quando esta não tenha definido de forma exaustiva o interesse público. Vinculando de forma obrigatória a Administração, considera-se viciado por desvio de poder o ato administrativo que não tenha por motivo o interesse público.[24]

 

 

 

 



[1] Lê-se:” 1. A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. 2. Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.”

[2] Lê-se: “Compete aos órgãos da Administração Pública prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.”

[3] Cfr. NUNO J. VASCONCELOS ALBUQUERQUE SOUSA, Noções de Direito Administrativo, 2ª Edição, Gestlegal, 2020, p.15.

[4] Cfr. JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, reimpressão da edição de 1987, Almedina, Coimbra, 2013, p.591 apud LUÍS CARLOS ALVES DIAS, O Exercício de Poderes de Autoridade por parte do Contraente Público no Contexto do Subcontrato, Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, 2013, p.22

[5] Cfr. NUNO J. VASCONCELOS ALBUQUERQUE SOUSA, Noções…, cit. p.17.

[6] Cfr. JORGE MANUEL RODRIGUES BONITO, A prossecução do interesse público pela Administração Pública: Algumas notas em contexto Português, 2018, p.33.

[7] Cfr. NUNO J. VASCONCELOS ALBUQUERQUE SOUSA, Noções…, cit. p.17.

[8] Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 3ª Edição, Almedina 2016, p.32.

[9] Cfr. BERNARDO DINIZ DE AYALA, O (Défice de) Controlo Judicial da Margem de Livre Decisão Administrativa, Lex, Lisboa, 1995, p.194 apud LUÍS CARLOS ALVES DIAS, O Exercício, cit. p.21.

[10] Cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições…, cit. p.137

[11] Lê-se: “2 - São, designadamente, nulos: e) Os atos praticados com desvio de poder para fins de interesse privado.”

[13] Cfr. RUI PEDRO PASSOS PINTO, O princípio da prossecução do interesse público: movimento de desintervenção económica do Estado e a privatização de tarefas administrativas, Universidade Lusíada, 2020, p.77.

[14] Cfr.  NUNO J. VASCONCELOS ALBUQUERQUE SOUSA, Noções…, cit. p.18.

[15] Cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições de Direito Administrativo I, Lisboa, 1994/95, p.136

[16]  Cfr. JORGE MANUEL RODRIGUES BONITO, A prossecução… cit. p.33.

[17] Cfr.  NUNO J. VASCONCELOS ALBUQUERQUE SOUSA, Noções…, cit. p.18.

[18] Cfr. JOÃO CAUPERS, VERA EIRÓ, Introdução ao Direito Administrativo, 12ª Edição, Âncora Editora, 2016 p.101.

[19] Lê-se: “1 - A Administração Pública deve pautar-se por critérios de eficiência, economicidade e celeridade. 2 - Para efeitos do disposto no número anterior, a Administração Pública deve ser organizada de modo a aproximar os serviços das populações e de forma não burocratizada.”

[20] Disponível em: http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/E0F3141215F5EEDA802568FC0039DAFF (consultado a 17/05/2022).

[21] Cfr.  NUNO J. VASCONCELOS ALBUQUERQUE SOUSA, Noções…, cit. pp. 17 e 18.

[22] Cfr. JORGE MANUEL RODRIGUES BONITO, A prossecução…, cit. p.33.

[23] Cfr. JORGE MANUEL RODRIGUES BONITO, A prossecução…, cit. p.19.

[24] Cfr. JORGE MANUEL RODRIGUES BONITO, A prossecução…, cit. p.24.

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