O Fundamento do Poder Regulamentar
O
Fundamento do Poder Regulamentar
Com
o presente excerto, procuro fazer uma análise do fundamento do poder
regulamentar no ordenamento jurídico português, fazendo algumas referências
históricas que, certamente, irão ajudar numa melhor compreensão da opção
adotada.
Diogo
Freitas do Amaral, diz-nos que o fundamento do poder regulamentar pode ser
entendido triplamente de: um ponto de vista prático; um ponto de vista
histórico; e, finalmente, de um ponto de vista jurídico[1].
Relativamente
ao ponto de vista prático, este tem a ver, essencialmente, com o facto de sendo
o legislador uma figura distante, não conseguir assegurar uma maior adequação
das normas aos casos concretos da vida social aos quais visa atender. Ora, é
sabido que os Parlamentos não têm como atender a todas as exigências que, pelo
quotidiano, são exigidas ao poder normativo do Estado. Como tal, é necessário
atribuir poder normativo à Administração que, mais próxima das questões
levantadas pelos casos concretos, fica incumbida de emitir regulamentos que
executem as determinações do Parlamento. Daqui pode concluir-se que o regulamento
funciona como uma espécie de ferramenta libertadora do Parlamento pois, vai deixar
para a Administração os trabalhos normativos nos quais não se deve focar. Seja
pela menor relevância que apresentam, pela elevada complexidade técnica (de que
o Parlamento não goza, visto a Administração conter órgãos especializados nas várias
áreas técnicas), ou pelos níveis de especificidade regionais e locais que, é
também a Administração, através do princípio da descentralização administrativa,
que está mais próxima das populações, a fim de conseguir, com maior rigor,
atender às exigências destas. Por outro lado, diz-nos, e bem, Mário Aroso de
Almeida que esta necessidade de atribuir ao executivo poder normativo, está
estreitamente relacionada com a passagem do Estado de Direito Liberal para o
Estado de Direito Social e, com esta, passando a citar “da assunção, por
parte dos poderes públicos, do compromisso de garantirem uma existência humana
digna e um mínimo existencial económico, social e ecológico a todos os cidadãos”.
Não tendo os Parlamentos conceção para a produção e adoção de normas com a rapidez
e a quantidade que a citação acima feita exige, e, não conseguindo, na maioria
das vezes, definir mais do que grandes linhas e princípios, é necessário a Administração
atuar. Esta é a eleita porque os regulamentos revelam um procedimento mais ligeiro
que o procedimento legislativo parlamentar e porque, sendo mais ágeis, são aptos
a prosseguir de forma eficiente e justa as exigências dos casos concretos[2].
Quanto
ao ponto de vista histórico, coaduna-se com o facto do ideal do princípio da
separação de poderes, concebido pelo Estado Liberal, ser impossível de
aplicação prática. Isto porque permitiu-se à Administração Pública “ter mão” no
poder legislativo, que seria exclusivo do Parlamento, ficando-se a
Administração pelo poder executivo[3]. Ora, como já referido no ponto
de vista prático, tal não foi possível visto a Administração melhor responder às
exigências da sociedade. Se fosse possível colocar este princípio em prática, a
Administração nunca “deitaria mão” do poder legislativo pois: poder legislativo
– Parlamento; poder executivo – Governo; poder judicial – Tribunais; segundo a
lógica formada pelos teóricos do Estado Liberal.
Por
fim, o ponto de vista jurídico, apresenta diferenças tendo em conta a época. Nos
tempos da Monarquia Absoluta[4] e da Monarquia Liberal, era a
figura do Monarca a fonte, o fundamento jurídico do poder regulamentar. Sendo o
monarca a figura máxima e central do Estado, está claro que só ele poderia ser o
fundamento desde poder. Já na época do Estado Liberal de Direito, o fundamento traduz-se
numa delegação ou autorização que o Parlamento concede ao Governo casuisticamente.
Ou seja, não era um poder genérico que o Governo possui-se; tinha de ser o
Parlamento, quando achasse adequado, a delegar essa competência. Atualmente, no
Estado Social de Direito, este fundamento reside na Constituição e na lei[5]. O professor Diogo Freitas do
Amaral, no seu manual, chama a atenção para dois aspetos que não se devem confundir:
o fundamento do poder regulamentar em geral e o fundamento regulamentar em particular.
O primeiro está consagrado na Constituição derivando assim, desta, e não da lei.
O segundo, radica na exigência de existir uma lei prévia que habilite o poder
regulamentar – lei habilitante – no sentido de desempenhar a função habilitante
necessária, já que não cria o poder regulamentar[6].
O
art.112º/7, da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), dispõe a não
admissibilidade de regulamentos desprovidos de um fundamento legal. Regula também,
nesta matéria, o CPA (Código de Procedimento Administrativo), no art.136º nºs 1
e 2 dispondo “a emissão de regulamentos depende sempre de lei habilitante”;
“os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar
ou, no caso de regulamentos independentes, as leis que definem a competência
subjetiva e objetiva para a sua emissão”, respetivamente. Contudo, existem
duas exceções a este critério: os regulamentos internos e os regimentos de
órgãos colegiais; para os quais existe poder regulamentar sem previsão
constitucional.
Quanto
ao regulamento interno, este verifica-se quanto aos órgãos das diversas pessoas
coletivas que, no seu todo, compõem a Administração, defendendo que dispõe de
poder de fazer os seus regulamentos internos. Afonso de Queiró, defende que
este poder é derivado de um direito próprio pertencente à Administração Pública.
Já Diogo Freitas do Amaral[7] diz que “o fundamento
jurídico do poder de fazer regulamentos internos é o poder de direção, próprio
do superior hierárquico: pura e simplesmente, quem pode dar ordens concretas e
individuais, deve também poder formular instruções genéricas, se tal for necessário
para uniformizar a ação dos serviços administrativos”. Esta posição, parece
fazer algum sentido, pelo menos pela lógica a minori ad maius, ou seja, “quem
pode o mais pode o menos”.
Quanto
aos regimentos de órgãos colegiais, a doutrina entende que estes também possuem
o poder de elaborar e aprovar os seus próprios regulamentos de organização e de
funcionamento. Por exemplo, dispõe o art.198º/2, da CRP que “é da exclusiva competência
legislativa do Governo a matéria respeitante à sua própria organização e
funcionamento”.
Em
Portugal, o Parlamento não tem exclusividade do exercício da função
legislativa, a nossa Constituição atribui ao Governo competências, amplas, legislativas
próprias; exercendo-a, muitas vezes, em concorrência com a Assembleia da
República, como se pode observar no disposto do art.198º, da CRP. Esta competência
comporta limites, que se encontram versados nos arts.164º e 165º, da CRP,
reserva absoluta e reserva relativa da Assembleia da República, respetivamente.
Como consequência deste poder, é limitada a área de intervenção do poder
regulamentar da Administração no exercício da sua função administrativa. Na verdade,
como expressa o art.198º, da CRP, é através do decreto-lei (que é um ato legislativo
– art.112º/1, da CRP), que o Governo exerce a grande “fatia de bolo” do seu
poder normativo, e não através de regulamentos. O que leva a concluir que numa
grande parte o faz no exercício de competências legislativas, e não de
competências normativas. É por este motivo que, como diz Mário Aroso de Almeida,
não se justifica que no nosso ordenamento jurídico existam figuras como: os
regulamentos delegados ou autorizados (regulamentos que necessitam de uma autorização
do Parlamento para que o Governo possa emanar normas inovadoras dotadas de
força de lei)[8];
porque a nossa Constituição consagra esse poder do Governo, nomeadamente quando
confere aos decretos-lei, como já anteriormente referido, força de lei – art.112º/1,
da CRP. É por este motivo que existe o nº5 deste mesmo artigo que dispõe “nenhuma
lei pode criar outras categorias de atos legislativos ou conferir a atos de
outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar,
suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”.
[1]Cfr. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo,
II, 4.ª ed., Lisboa, Almedina, 2018, p.166
[2] Cfr. Mário Aroso de Almeida, Teoria Geral do Direito
Administrativo, 9.ª ed., Lisboa, Almedina, 2022, pp.206-207
[3] Cfr. Diogo
Freitas do Amaral, Curso…, ob.cit., p.166
[4] Forma de governo absolutista que se caracteriza por o
monarca concentrar em sim todas as formas de poder – legislativo, executivo e
judicial – e de forma independente face aos outros órgãos do Estado. O monarca
é o ponto supremo desta forma de governo. A título de curiosidade é de recordar,
das aulas de história e do conhecimento geral, que esta forma de governo ficou
muito conhecida pela figura de Luís XIV da França que se intitulou “Rei Sol” e
que dizia: “O Estado sou eu”. Desta frase se retira a essência da monarquia
absoluta.
[5] Manifestação do princípio da legalidade do qual resulta,
resumidamente, que a lei é o fundamento de qualquer atuação administrativa.
[6] Cfr. Diogo Freitas do Amaral, Curso…, ob.cit., p.167
[7] Cfr. Diogo Freitas do Amaral, Curso…, ob.cit., p.168
[8] Cfr. Mário Aroso de Almeida, Teoria…, ob.cit., p.209
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