A Audiência dos Interessados

A Audiência dos Interessados 

    De acordo com Marcelo Rebelo de Sousa, a audiência dos interessados é "o momento, por excelência, da participação dos particulares no procedimento administrativo, constituindo a concretização legislativa do imperativo constitucional de participação dos interessados na formação das decisões que lhes digam respeito (art. 267º/5 da CRP)"(1).  

    Acrescenta, também, Vasco Pereira da Silva, ser corolário do Princípio da Participação que o particular seja ouvido antes da prática de um ato de boa-fé. 

    Neste sentido, é correto afirmar que a audiência dos interessados tem funções, quer subjetivas, quer objetivas: prendendo-se as primeiras com a necessidade de evitar decisões-surpresa e de facultar aos particulares uma oportunidade para fazerem valer as suas posições e os seus argumentos no procedimento; e as segundas, com a necessidade de auxiliar a administração a decidir melhor, de modo mais consensual e em conformidade com o bloco da legalidade. 

    Assim, encontra-se o direito à audiência prévia regulado nos arts. 121º a 125º do CPA, caracterizando-se esta figura como uma das faces de dois importantes princípios gerais: o Princípio da Colaboração da Administração com os Particulares, consagrado no artigo 11º/1 do CPA, que se traduz na ideia de que os órgãos da administração devem atuar em estreita colaboração com os particulares, cumprindo aos primeiros, designadamente, prestar as informações e esclarecimentos de que os segundos careçam; e o Princípio da Participação, plasmado no art. 12º do CPA e no art. 267º/5 da CRP, que transmite a ideia de que os órgãos administrativos devem assegurar a participação dos particulares, bem como das associações que tenham por objeto a defesa dos seus interesses, na formação das decisões que lhes digam respeito, designadamente através da respetiva audiência.

    Note-se ainda que, paradigmaticamente, a audiência dos interessados ocorre na parte final da instrução, depois de estarem apurados os elementos de facto e de direito relevantes para a decisão. Assim, sustenta Marcelo Rebelo de Sousa ser equivocada a afirmação de que a audiência se dá após a instrução, usando como argumentos: 

    "1) a instrução pode continuar depois da audiência dos interessados; 2) a audiência dos interessados pode ter que decorrer durante a instrução; 3) a audiência dos interessados pode ter que ocorrer na fase da iniciativa, sempre que a administração projete decisões suscetíveis de afetar os interessados"(2).  

    Quanto ao modo de esta se realizar, possui o instrutor discricionariedade de escolha, podendo optar pela forma oral ou escrita, conforme previsto no art. 123º do CPA (nesse sentido, optará pela solução mais célere, atendendo à natureza da questão, sendo esta decisão insuscetível de recurso contencioso). 

    Finalmente, quanto à sua dispensa, a mesma encontra-se prevista no art. 124º do CPA, tornando-se, nesses casos,  necessário fundamentar a sua razão de ser, dado ser essa a única garantia de que foram ponderadas seriamente as razões invocadas pelo particular

A questão que surge quando se verifica a ausência da audiência dos interessados, é a de saber qual o desvalor jurídico associado à mesma, existindo duas vias possíveis, consoante a posição doutrinária adotada:

- Admitir que se está perante um caso de anulabilidade, aplicando o disposto no art. 163º/1 do CPA.

- Admitir que se está perante um caso de nulidade, aplicando o disposto no art. 161º/2 d) do CPA, por estar em causa a violação de um direito fundamental. 

Relativamente à primeira via, seguindo o entendimento de Freitas do Amaral, configurando-se a audiência prévia como um direito meramente legal (posição muito sustentada na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo), não se incluí a mesma no âmbito dos direitos fundamentais, por neste existir uma ideia de base de proteção da dignidade da pessoa humana, que na audiência prévia não se revela. Ademais, na Constituição, os direitos fundamentais encontram-se previstos no disposto dos artigos 12º e ss., estando eles divididos em duas categorias: direitos, liberdades e garantias; direitos económicos, sociais e culturais. Acontece, porém, que o art. 267º/5, da CRP (artigo que se invoca para analogia de direito fundamental) já não está  abrangido pelo elenco de direitos fundamentais e, portanto, à luz da Constituição, não se qualifica a audiência prévia como direito fundamental.

Por sua vez, relativamente à jurisprudência que defende esta tese, pode referir-se o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 7/12/2006, nº 02158/06, do qual constam as visões de Vieira de Andrade, que define os direitos fundamentais como sendo os que “conferem posições jurídicas subjectivas individuais e permanentes, com a finalidade principal de proteger a liberdade e a dignidade das pessoas, e de Gomes Canotilho e Vital Moreira, que sustentam que “o critério material para determinar quais direitos são fundamentais depende do seu grau de importância sob o ponto de vista dos valores constitucionais da liberdade, democracia e socialização, entre eles necessariamente os que a própria Constituição considera como tais .

Contrariamente, a nível doutrinal, Marcelo Rebelo de Sousa, Vasco Pereira da Silva, Sérvulo Correia e Paulo Otero apoiam a segunda via, sustentando que a audiência prévia consiste num direito fundamental, dado no art. 41º, da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, vir previsto o direito à boa administração que, segundo o disposto no nº 2, alínea a), do referido artigo compreende “o direito a qualquer pessoa ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afete desfavoravelmente”. Outro fundamento é o facto de o art. 16º, da CRP, não ser taxativo, na medida em que prevê uma abertura aos direitos fundamentais, que podem ser recebidos por via do Direito Internacional Público, Direito Europeu ou até em lei ordinária, num raciocínio de analogia com outros direitos fundamentais (nº1).

A nível jurisprudencial, considerou-se no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 7/04/2022, nº 03478/14.1, que o desvalor jurídico que se deve atribuir a um ato que não procedeu à audiência dos interessados é a nulidade, por considerar que se trata de um direito fundamental, violando assim o art. 161º/2 alínea d) da CPA.

Não obstante a discussão doutrinária, considera Vasco Pereira da Silva que o que verdadeiramente importa é que os Tribunais controlem este tipo de situações e não permitam a tomada de decisões sem a audiência dos particulares.

    1) Marcelo Rebelo de Sousa, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Lisboa, 2006, p. 127.
    2) Marcelo Rebelo de Sousa, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Lisboa, 2006, p. 128.

Bibliografia

    Marcelo Rebelo de Sousa, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Lisboa, 2006. 
    Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, v. II.
    Informação recolhida nas aulas do Professor Vasco Pereira da Silva.
    Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de de 7/12/2006, nº 02158/06.
    Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 7/04/2022, nº 03478/14.1.

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