Análise ao acórdão do TCA Norte, processo nº00700/04.6, de 04/10/2007
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Introdução e contextualização
O presente caso prende-se
com o facto de haver uma discordância entre uma família, que vê prejudicado o
seu direito ao repouso e à reserva sobre a intimidade da vida privada após a
construção de edifícios junto à sua propriedade, recorrendo aos meios
competentes para a emissão de uma licença para a construção de um muro de 5
metros de forma a salvaguardar a sua privacidade. Neste ponto, chocam várias
temáticas de especial relevo, das quais cabe realçar a atuação discricionária
ou vinculada da administração, a colisão entre um direito de um particular e
normas administrativas de ordenamento do território, do princípio da
proporcionalidade e, de certo modo, da legalidade. A ora Recorrente alega que o
indeferimento do pedido da licença consta de um erro grosseiro de avaliação
“estética”, e pede uma solução para o seu caso.
A este respeito, mais se
acrescenta que os preceitos que fazem apelo à conformidade dos licenciamentos
como a estética das povoações, a beleza das paisagens e a adequação ao ambiente
urbano inserem-se no exercício de poderes vinculados da Administração, estando,
por isso, qualquer decisão relativa à atribuição das licenças supramencionadas
dentro dos limites legalmente previstos de atuação da administração pública.
Base legal invocada pela
Câmara Municipal – art 121.º RGEU
“As construções em zonas
urbanas ou rurais, seja qual for a sua natureza e o fim a que se destinem,
deverão ser delineadas, executadas e mantidas de forma que contribuam para
dignificação e valorização estética do conjunto em que venham a integrar-se.
Não poderão erigir-se quaisquer
construções suscetíveis de comprometerem, pela localização, aparência ou
proporções, o aspeto das povoações ou dos conjuntos arquitetónicos,
edifícios e locais de reconhecido interesse histórico ou artístico ou de
prejudicar a beleza das paisagens.”
·
Atuação discricionária e vinculada no
caso
A questão da atuação
discricionária ou vinculada por parte da administração inicia-se neste ponto. A
vinculação e a discricionariedade tratam-se das duas maneiras comuns pelas
quais a lei modela a atividade administrativa. A discricionariedade administrativa, tal como definido pelo Prof. Pedro Costa Gonçalves, trata-se de uma figura que referencia o poder conferido por uma norma de competência à administração pública para que esta, com base nos seus próprios juízos de apreciação e valoração, decida sobre a medida a adotar numa situação concreta. “Os atos são vinculados quando
praticados pela Administração no exercício de poderes vinculados, e são
discricionários quando praticados no exercício de poderes discricionários (…)
não há atos totalmente vinculados, nem atos totalmente discricionários. Os atos
administrativos são sempre o resultado de uma mistura ou combinação entre o
exercício de poderes vinculados e o exercício de poderes discricionários”[1].
Uma vez que na maioria
dos casos, o legislador reconhece que não lhe é possível prever antecipadamente
todas as circunstâncias em que a Administração vai ter de atuar, confere essa
mesma competência aos órgãos administrativos, que devem zelar sempre pela
satisfação do interesse público e sempre em conformidade com os princípios
gerais de Direito, tendo em vista o bloco de legalidade[2], que se afigura aqui como
o centro de toda a decisão. Para além de razões práticas existem razões
jurídicas - O poder discricionário visa, antes de tudo, assegurar o tratamento
equitativo dos casos individuais. E é precisamente nesse prisma que se torna
interessante analisar o caso descrito: Observamos a vertente vinculada no
sentido em que as licenças de construções em zonas urbanas são permitidas caso
contribuam para a dignificação e valorização estética da paisagem, e são
proibidas as construções que devido à sua localização, aparência ou proporções
ponham em causa o aspeto das povoações ou prejudiquem a beleza das paisagens.
Já a vertente discricionária existe no sentido da integração dos conceitos
indeterminados existentes na norma, como “dignificação e valorização estética”,
aspeto das povoações e beleza das paisagens. Vai caber ao legislador
desenvolver esse mesmo preceito e aplicar ao caso concreto a solução mais
adequada.
O poder discricionário
fundamenta-se, afinal, quer no princípio da separação de poderes, quer na
própria conceção do estado Social de Direito, enquanto Estado prestador e
constitutivo de deveres positivos para a Administração, que não prescinde,
antes pressupõe, uma margem de autonomia jurídica.
No entanto, aquilo que se
verifica no acórdão, é que o STA sustenta que a decisão que defere ou nega o
licenciamento por existência de inconvenientes estéticos, não decorre do
exercício de poderes discricionários, mas sim de poderes vinculados à norma
contendo conceitos indeterminados, ainda que disponham de uma margem de livre
apreciação pela entidade competente, que tem aqui o papel de formular um juízo
objetivo e imparcial, e uma decisão que respeite tanto a salvaguarda pelos
interesses dos particulares, como o cumprimento das disposições legais
relativas ao ordenamento do território.
·
Matéria central do caso: Pode o muro
ser construído, atendendo a todas as limitações mencionadas?
A ora Recorrente, tendo
em conta o caso visado, pretendia a construção de um muro de 5 metros, de forma
a garantir que não se facilita o acesso a terceiros à sua propriedade, e de
forma a que possa ver satisfeito o seu direito à intimidade da vida privada e
ao sossego. O Tribunal indeferiu o seu pedido, sustentando que a avaliação que
deve ser feita baseia-se em critérios definidos e precisos, e que, por essa
razão, os muros que circundam a sua área de residência não passam dos 2 metros
de altura - Considerando, dentro do domínio da discricionariedade técnica, que
o licenciamento para a construção do muro iria colocar em causa a estética da
paisagem. Deste modo, nem mesmo o tribunal poderia intervir na questão a menos
que se verificasse um erro grosseiro, sendo que tais juízos valorativos são
feitos por peritos na área - que acabam por preencher o conceito indeterminado
referido no art. 121.º do RGEU. Não se tratando de um caso em que o muro é
irrelevante para a paisagem, e tendo em consideração o facto de que a
construção do mesmo iria destoar manifestamente dos restantes muros edificados,
o Tribunal propôs a colocação de arboredo.
·
Segundo ponto da alegação: violação
do princípio do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos
particulares
A Ora Recorrente, afirma
que a decisão do Tribunal vai contra o princípio do respeito pelos interesses
legalmente protegidos dos particulares atinente ao art. 266.º nº1 da CRP,
afirmando que vê violado o seu direito ao repouso, segurança, tranquilidade e
conforto. A questão é que, a menos que se tratem de direitos absolutos, como os
direitos de personalidade, não se podem sobrepor a outros direitos prosseguidos
pela administração, que aqui considera o respeito pelas normas urbanísticas
crucial para o cumprimento da legalidade. A jurisprudência do STA considera que
as normas urbanísticas se sobrepõem ao seu invocado direito ao repouso, na
medida em que não se trata de um direito absoluto.
Tendo sido dada uma
solução perfeitamente adequada para a solução do problema, a colocação de
arboredo manifesta-se como um meio menos lesivo para a estética da paisagem, e
desempenha a função de salvaguardar o direito à privacidade alegado pela Recorrente,
que se diz incomodada pelo facto de terceiros poderem observar o interior da
sua propriedade. Cabe agora à Recorrente proceder às alterações necessárias
para fazer valer o seu direito, sendo a solução do Tribunal eficaz.
·
Terceiro ponto da alegação: A
violação do princípio da proporcionalidade
O princípio da proporcionalidade, como sabemos, impõe
que os procedimentos que precedem a celebração de contratos administrativos
devem garantir um equilíbrio nas relações entre cidadãos e ainda entre eles e a
própria administração, proibindo contrastes intoleráveis entre vantagens
reconhecidas a um ou alguns sujeitos de direito e sacrifícios que impedem sobre
os demais. Deve, por isso, ser escolhido o procedimento mais adequado ao
interesse público a prosseguir, ponderando-se os custos e os benefícios
decorrentes da respetiva utilização. “Não ignoramos que as dimensões normativas
inerentes ao princípio da proporcionalidade acabam por conceder uma margem de
escolha ao decisor jurisdicional”.[3] Deve ainda ser feito um
juízo de adequação, na medida em que a medida deve ser adequada ao fim a
prosseguir, um juízo de necessidade, na medida em que deve ser a que menos lese
os direitos e interesses dos particulares, e um juízo de equilíbrio[4]/proporcionalidade.
A Recorrente alega que o princípio da proporcionalidade
fora violado na vertente do equilíbrio, invocando o art. 266.º nº 2 CRP, na
medida em que os órgãos administrativos agiram em violação dos interesses
legalmente protegidos dos particulares, tendo em vista o cumprimento de valores
estéticos, fazendo claramente a destrinça entre o interesse estadual e os seus
direitos. “é uma simplificação excessiva, ou mesmo um erro, entender que os
direitos e liberdades individuais estão sempre em oposição ao interesse
estatal, desde logo porque o Estado também tem interesse em que os cidadãos
gozem as suas liberdades, sendo estas também bens coletivos”[5]
O Tribunal clarifica dizendo que não se verifica o
desrespeito pelo princípio da proporcionalidade, na medida em que, em primeira
face, caso a recorrente tivesse tal observação, deveria ter invocado na petição
inicial, e em segundo lugar, o Tribunal deu uma solução que garante a
salvaguarda dos direitos de ambos os visados no caso.
Conclusão
A decisão tomada pelo tribunal foi clara: decidiu pela
improcedência das alegações. Penso que neste caso se justifica a decisão, na medida
em que não se viu desrespeitado nenhum dos princípios da administração pública,
além de que a discricionariedade utilizada na integração de conceitos indeterminados,
tendo sido feita em sede de discricionariedade técnica, foi a mais objetiva e
clara possível, sendo que aqui “a Administração não faz escolhas, não emite
juízos (…) nem é beneficiária de um poder de apreciação”[6] – sendo peritos a fazer a
avaliação, garante-se um grau de exigência e rigor que não seria possível caso
a avaliação fosse um juízo de discricionariedade criativa. O muro que pretendia
ser construído, destoava claramente dos demais, por isso justifica-se o
indeferimento. A meu ver, quanto ao princípio da proporcionalidade, caso não tivesse
havido falhas de invocação procedimentais por parte da recorrente, e não
houvesse o tribunal proferido decisão no sentido da alternativa ao muro, a ponderação
a ser feita iria recair na construção do mesmo, na medida em que ao abrigo do
art. 7.º nº 2 do CPA, a ponderação da “justa medida”[7], numa ótica de
razoabilidade, implica-se que “se faça um juízo centrado exclusivamente na
esfera do afetado, independentemente dos efeitos positivos para o interesse
público”[8], o que obrigava a que
tivesse que se sobrepor os direitos e liberdades da proprietária em virtude do
interesse público, no caso, da Câmara Municipal. A menos que houvesse a
possibilidade de a construção desse muro acarretar uma situação de perigo
grave, atual e iminente de ofensa a um interesse protegido pela ordem jurídica,
v.g património e se invocasse o estado de necessidade administrativa[9], parece que o pedido de
licenciamento poderia ter sido deferido. Mas uma vez que tal cenário não
ocorreu, a decisão do Tribunal foi conforme e fundada nos princípios da Administração
Pública, dado que a alternativa de colocação de arboredo afigura-se aqui como
menos lesiva para o interesse público (a salvaguarda pela estética e respeito
pelas normas de organização territorial), bem como satisfaz o interesse do
privado visado no caso.
Por Pedro Lachica Alves,
nº 64692
[1] D. Freitas
do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol II, Coimbra, Almedina, 2001,
págs. 76-77
[2] Vide P. Costa Gonçalves, Manual de Direito
Administrativo, Vol I, Coimbra, Almedina, 2020, pág 376 e ss.
[3] Vitalino
Canas, Discricionariedade,
Vinculação, Proporcionalidade, Lisboa, AAFDL Editora, 2022, pp. 24 e ss
[4] Vide
Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado de
Matos, Direito Administrativo Geral – Introdução e princípios
Fundamentais, tomo I, Lisboa, 2006, p. 207
[5] Anabela Costa Leão, O princípio da proporcionalidade
e os seus críticos, Coimbra, Instituto Jurídico FDUC, 2021, pág 146 e ss.
[6]Pedro Costa Gonçalves, Manual
de Direito Administrativo, Vol 1, Coimbra, Almedina, 2020, pág. 217-218
[7] J. J. Gomes Canotilho, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed. (reimp.), Coimbra,
Almedina, 2015, pág. 270
[8] Vitalino Canas, O Princípio da Proibição
do Excesso na Conformação e no Controlo de Atos Legislativos, Coimbra,
Almedina, 2017, pág. 1179 e ss.
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