Comentário ao acórdão do Supremo Tribunal Administrativo e o Princípio da Legalidade

 

Nº processo: 01187/05; de 07/03/2006; relator: Jorge de Sousa; disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/241ad33d6b5ef2d5802571340050526e?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1

 

 

Enquadramento da matéria

 

Para entendermos de que trata o acórdão, é imperativo que se saiba de que se trata o  princípio da legalidade, formulado no nosso texto constitucional no art. 266º/2 e no 3º/1 do CPA [1] .

Em termos gerais, pode dizer-se que é uma fonte da atuação administrativa [2], isto significa que a administração só atua se tiver poder para tal concedida pela fonte legal, ou seja “o princípio da legalidade da administração consiste na subordinação [3] da Administração e da sua atividade à lei” [4].

Para Freitas do Amaral traduz-se no facto da Administração Pública ter de prosseguir o interesse público em obediência à lei [5].

Contudo, esta ideia do princípio da legalidade nem sempre foi concebida deste modo, sofreu uma evolução desde o Estado Liberal até ao Estado Social, ora analisemos a história do princípio administrativo.

         O princípio surgiu no início do século XIX com as Revoluções Liberais, tendo por isso uma dimensão traumática: nessa altura, a lei impunha-se à vontade da Administração, o que constitui uma visão limitada do princípio baseada numa lógica formalista do conceito de lei.

Deste modo, a interpretação tradicional desta altura era a de que fora dos âmbitos das suas áreas cuja regulação estava reservada ao parlamento, a Administração poderia aturar livremente, a chamada “discricionariedade livre”, sendo esta a conceção tradicional defendida por Marcello Caetano [6], ou seja esta definição consistia numa proibição, estando porém ultrapassada nos dias de hoje.

O principal aspecto que traduz a evolução [7] da passagem do princípio da legalidade no Estado Liberal e no Estado Democrático é o de que a “a legalidade administrativa deixa de ser apenas aquilo que o legislador diz, podendo também ser aquilo que a Administração Pública e os Tribunais entendem que o legislador diz” [8].

Assim sendo, há que atender à interpretação atual do princípio da legalidade: num primeiro aspeto há que realçar que atualmente a adminsitração não é livre, estando submetida ao controlo da legalidade, regras e princípios de direito público. Para além disso, e reforçando a principal mudança o princípio deixou de se esgotar na lei, abrangendo todo o Direito, sendo por isso material e não meramente formal. A doutrina mais recente entende-o como órgãos e agentes da administração pública que só podem agir com fundamento na lei e dentro dos limites por ela impostos. Desde logo, deixa de haver reserva de Parlamento, assumindo em muitos casos o Executivo poderes legislativos normais [9].

Em suma, podem apontar-se três diferenças essenciais que demarcam esta mudança de paradigma [10]: em primeiro lugar, o princípio passa a ser definido de uma forma positiva e não já de uma forma negativa, ou seja passa a dizer-se o que a Administração deve ou pode fazer e não apenas o que está proibida a fazer. Em segundo lugar, atualmente o princípio abarca todos os aspetos da atividade administrativa e não apenas aqueles que possam consistir na lesão de direitos e interesses dos particulares. Finalmente, a lei hoje, não é apenas um limite à atuação da administração: é também o fundamento da ação administrativa.

Passa a entender-se que a reserva de lei exige uma densificação normativa do legislador. A lei passa a não ser só o limite como o pressuposto e fundamento da atividade administrativa [11] – surgindo o subprincípio da precedência de lei.

A superação da conceção tradicional da legalidade projetou-se no campo da discricionariedade [12] administrativa, que antes era vista como zona livre do Direito, ou de poder originário da Administração em que ela atuaria livre de controlo judicial e posteriormente passou a ser entendida como a concessão à Administração de poderes próprios para resolver casos concretos, é uma “delegação feita pelo legislador ao agente para encontrar a solução para o caso concreto” [13], sendo por isso um espaço de realização constitutiva do Direito Administrativo [14].

Relativamente às interpretações da legalidade pela doutrina portuguesa: Gomes Canotilho defende que o princípio postula 2 princípios fundamentais: o da supremacia / prevalência da lei e o da reserva de lei que permaneceram válidos [15]. O primeiro corresponde ao sentido negativo do princípio e o segundo ao sentido positivo [16]. Como refere Freitas do Amaral, traduz-se no facto de “ nenhum ato de categoria inferior à lei pode contrariar o bloco de legalidade [17] sob pena de ilegalidade” [18]. Sérvulo Correia baseia-se na visão de Eisenmann retirando dela as concepções de preferência de lei, que representa a exigência do ato administrativo não poder entrar em contradição com a lei. O segundo postulado, exige que a Administracao ague com respaldo em alguma lei [19], ou seja “implica uma densidade normativa da lei”, como explica Vieira de Andrade [20].

Quanto à posição de Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos, explicitam que, quanto à vertente de reserva de densificação normativa, que há uma necessidade de o fundamento jurídico-normativo sobre o qual atua a administração pública, possuir um grau de pormenorização suficiente para permitir antecipar adequadamente a atuação administrativa em causa [21]

Concluindo, é de realçar a visão de Gomes Canotilho, Freitas do Amaral e Sérvulo Correia, que é vinculativa à de Eisenmann quanto à subordinação restritiva do poder da Administração Pública à lei, que se traduz na ideia de que bastaria a existência de leis autorizativas da atuação administrativa para que, mesmo que a lei não predetermine o conteúdo dos direitos e obrigações, a Administração Pública fique autorizada a tomar uma entre as várias medidas possíveis [22].

Porém, existem também exceções a este princípio que se podem realçar, desde logo, está a teoria do estado de necessidade, onde o Estado em circunstâncias excepcionais fica dispensado do atendimento às exigências legais necessárias para emissão de atos e tomadas de decisões, ainda que estas venham a ferir os Direitos e interesses dos particulares [23].

Como explica Freitas do Amaral, a teoria dos atos políticos, segundo a qual todos os atos de conteúdo e materialidade são de cunho essencialmente inerente à função política. Estes atos políticos são possíveis de ser declarados como ilegais em decisões de tribunais administrativos, bem como em apreciações de impugnações contenciosas.

            Finalmente, a ideia de que o ato administrativo necessita de lei prévia que o fundamente – teoria do poder discricionário – não contrária a ideia de discricionariedade. Ou seja, há situações que permitem ao administrador a escolha ou possibilidade de fixar a medida da sua ação, porém a discricionariedade é conferida pela própria lei, só cabendo ao administrador atuar nesse sentido quando a lei o permita [24].

 

Análise do acórdão

 

Em primeiro lugar, resumidamente A, intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa recurso contencioso do despacho emitido pelo Vereador da Câmara Municipal de Cascais que, determinou que despejasse um prédio rústico onde tem instalado um estabelecimento de exposição e venda de artesanato, de venda de terras, adubos, flores e plantas, e de fabricação, exposição e venda de fornos e churrasqueiras.

Inconformada com a anulação do ato recorrido, A interpôs recurso juridiscional para este Supremo Tribunal Administrativo, o qual proferiu o acórdão em análise. 

O fundamento para o despejo da recorrente, declarado pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, incide no disposto no art. 165.º do R.G.E.U., que determina que «... as câmaras municipais poderão ordenar ... o despejo sumário dos inquilinos e demais ocupantes das edificações ou partes das edificações utilizadas sem as respectivas licenças», sob pena de, não cumprindo ser remetida participação a Tribunal pela prática do crime de desobediência prevista no artigo 348.º do Código Penal.

 

A questão que se deve analisar é precisamente se o exercício de uma atividade comercial, “a céu aberto”, sem a respetiva licença corresponde à “utilização de uma edificação ou parte dela” sem licença. E o Supremo Tribunal Administrativo interpretou a norma no sentido de que não são correspondentes, portanto que não se pode aplicar o art.165º ao caso concreto, e consequentemente não houve vício de violação da lei.


           Ora vejamos,
o texto do referido art. 165.º apenas faz referência aos de «inquilinos e demais ocupantes de edificações ou partes das edificações utilizadas sem as respectivas licenças ou em desconformidade com elas» e não a estabelecimentos comerciais que funcionam a “céu aberto”.

No entanto, a autoridade recorrida vem sustentar a ideia de que para alem de existirem no local algumas construções de apoio à actividade desenvolvida no terreno, deverá entender-se que o despejo sumário constitui uma medida de tutela da legalidade urbanística, aplicável não só ma construções clandestinas mas também ai desenvolvimento de actividades sem licenciamento ou em desconformidade com ele.

Contudo, é de entender que esta posição não tem qualquer suporte no texto do referido art. 165.º, pelo explicado anteriormente.
Para além disso, note-se que a Administração está obrigada, atualmente, a atuar em conformidade com o princípio da legalidade, consagrado no art. 266.º, n.º 2, da C.R.P. e concretizado no art. 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, como referido no enquadramento prévio desta exposição. Isto significa que não se pode admitir a utilização do regime legal previsto para determinado tipo de casos a situações distintas.

Concluindo, é adotando a posição do Supremo Tribunal Administrativo, é claro que tendo em conta o princípio da legalidade, a “ Autoridade Recorrida não podia basear-se no referido art. 165.º para ordenar o despejo referido”.

 

 

                                                    Maria Pereira, subturma 12, turma B, 2ºano

 

Bibliografia:

 

·         António Augusto Costa, “A erosão do princípio da legalidade e a discricionariedade administrativa”, FDUC, centro de estudos de direito público e regulação.

·         Freitas do Amaral, “Curso de Direito Administrativo”, V.II.

·         Marcello Caetano, “Manual de Direito Administrativo”, Tomo I.

·         Paulo Otero, “Manual de Direito Administrativo”.

·         José Carlos Vieira de Andrade, “Lições de Direito Administrativo”.

·         Rogério Soares, “Direito Administrativo”.

      Gomes Canotilho, «Direito Constitucional e a Teoria da Constituição», 1996.

·         Pedro Costa Gonçalves, “Manual de Direito Administrativo”, V.I.

·         José Carlos Vieira de Andrade, “o ordenamento jurídico administrativo português”, in Contencioso Administrativo.

·         Diogo Coelho, in E-pública Revista Eletrónica de Direito Público..

·         "O princípio da legalidade sobre a perspetiva da Administração Pública: uma análise comparativa da doutrina e jurisprudência portuguesa e brasileira”, in Universidade Católica de Petrópolis, Rio de Janeiro, Brasil.



[1] O art.3º/1 apresenta o conceito de lei e o art.3º/2 abrange poderes vinculados e discricionários. Para Vasco Pereira da Silva a conjugação destas disposições traduz-se numa contradição, uma vez que se interpretarmos literalmente viola a constituição quanto às disposições relativas ao estado de emergência.

[2] Na perspetiva de Vasco Pereira da Silva, o princípio abrange normas e regras de direito e não apenas a lei, o que implica uma ideia de juridicidade que surge com a evolução deste princípio ao longo da História do Direito Administrativo, traduzindo-se numa atualização do conceito de legalidade e que é mais ampla que a ideia de legalidade por estar associada a uma lógica material e aberta.

[3] O significado desta subordinação é o de que a administração está sujeita à lei (em sentido formal, ou seja às leis da AR, decretos-leis do Governo, decretos-legislativos regionais da ALR) – sentido legal, bem como ao Direito (CRP, direito europeu, internacional, global) – sentido supra-legal, e ainda há uma lógica infra-legal (regulamentos, planos, concretos). Isto traduz-se na ideia de Direito Administrativo Multinivel, defendida por Vasco Pereira da Silva e que assenta no facto de desde o particular até ao global existirem diferentes níveis de aplicação da ordem jurídica.

[4] António Augusto Costa, “A erosão do princípio da legalidade e a discricionariedade administrativa”, FDUC, centro de estudos de direito público e regulação.

[5] Freitas do Amaral, «Curso de Direito Administrativo», V.II, cit., p.38

[6] A ideia de Marcello Caetano é a de que “nenhum órgão ou agente da Administração Pública tem a faculdade de praticar atos que possam contender com interesses alheios senão em virtude de uma norma geral anterior” - Marcello Caetano, “Manual de Direito Administrativo”, Tomo I, pp.30

[7] O estado regulador e o administrativo desenvolveram-se rapidamente após 1945, multiplicando-se as situações que evidenciam a clara superação da conceção tradicional da legalidade administrativa, surgindo assim a administração de prestação ou constitutiva, desintegrando-se a ideia tradicional do princípio da legalidade.

[8] Paulo Otero, “Manual de Direito Administrativo”, cit. pp. 162 e 163

[9] A reserva de função legislativa desintegra-se, deixando de se circunscrever ao campo da liberdade e propriedade dos cidadãos, devido à necessidade crescente de controlar a intervenção da administração em mais áreas.

[10] Apontadas por Freitas do Amaral, “Curso de Direito Administrativo”, V.II, p. 40

[11] José Carlos Vieira de Andrade, “Lições de Direito Administrativo”, pp 40

[12] O poder discricionário é visto como exceção à legalidade por Marcello Caetano, que adota uma perspectiva característica do modelo da administração autoritária e deste modo o elemento da competência e o do fim têm sempre de constar da lei, sendo vinculativos e não discricionários.

Por outro lado, Freitas do Amaral, apesar de defender que já não se pode falar em liberdade como poder da Administração, aponta ainda para zonas de liberdade e de princípios que não são obrigatórios para o autor.

O pensamento de Sérvulo Correia vai no sentido de acreditar na existência de aspetos vinculados e discricionários relativos aos próprios poderes (e não só aos atos como defendia o anterior autor), revelados pela margem livre de apreciação (momento em que a administração aprecia os factos) e pela margem livre de decisão.

No que toca à teoria da discricionariedade, Vasco Pereira da Silva nega a existência de liberdade relativamente à realidade de natureza jurídica de administrar para além disso defende que o poder discricionário e vinculado são controlados em última analise pelos tribunais.

[13] Rogério Soares, “Direito Administrativo”, cit. p.65

[14] Nesse sentido, ver Freitas do Amaral, “Curso de Direito Administrativo”, V. II, p.88

[15] Gomes Canotilho, «Direito Constitucional e a Teoria da Constituição», 1996, p.371

[16] No sentido negativo, a legalidade administrativa estabelece que a Administração não pode praticar atos que contrariem a lei. No positivo, a legalidade administrativa representa a exigência de a ação administrativa se fundar na lei, visão de Pedro Costa Gonçalves, “Manual de Direito Administrativo”, V.I, p.376 e ss e de José Carlos Vieira de Andrade, “o ordenamento jurídico administrativo português”, in Contencioso Administrativo, 1986, pp.33 e ss

[17] A ideia de bloco da legalidade é defendida por Freitas do Amaral, Marcelo Rebelo de Sousa e João Caupers e significa o alargamento do princípio da legalidade. Opostamente, a ideia de que o “bloco” é sinónimo de inflexibilidade e deixa de fora a dimensão supralegal, por estar associado apenas à lógica da norma, é seguida por Vasco Pereira da Silva.

[18] Freitas do Amaral, 2016, cit. p.46

[19] Nesse sentido, ver Sérvulo Correia que se baseia na conceção de Eisenmann, 1987, p.58

[20] Vieira de Andrade, 1986, cit. p.39

[21] Diogo Coelho, in E-pública Revista Eletrónica de Direito Público

[22] Esta visão fundamenta que a Administração Pública só pode fazer o que uma norma superior (pertencente ao bloco de legalidade) a autorize e habilite a fazer.

[23] Note-se que, porém, sanada a situação de necessidade, o Estado fica obrigado a indemnizar os particulares que viram os seus direitos sacarificados.

[24] “O princípio da legalidade sobre a perspectiva da Administração Pública: uma análise comparativa da doutrina e jurisprudência portuguesa e brasileira”, in Universidade Católica de Petrópolis, Rio de Janeiro, Brasil

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