"Na intenção está o valor da ação"

 

“Na intenção está o valor da ação”

Introdução:

No âmbito da presente publicação, por mim realizada, neste blogue, pretendo elucidar os leitores, para uma realidade muito presente no Direito Administrativo e, em especial, na Administração Pública, que tem como cerne a organização administrativa e que, para qualquer pessoa que inicie o seu estudo, em razão desta matéria, poderá gerar alguma confusão, sendo o mesmo o dever de obediência a que o subalterno está vinculado, perante o seu legitimo superior hierárquico, no contexto de ordens que escapam à legalidade.

Com o presente objetivo em vista, creio que seja indispensável consultar, primeiramente, o anterior post, de minha autoria, realizado neste blogue, assim sendo e sem mais delongas, iniciarei a exposição.

 

Dever de Obediência:

Primeiramente, creio que se caracterize como imprescindível estabelecer algumas considerações fundamentais, que foram objeto do meu último post, como é seu exemplo os requisitos do dever de obediência a que o subalterno se encontra vinculado, no âmbito da sua relação hierárquica com o seu legitimo superior hierárquico.

Neste cenário, o Prof. Diogo Freitas do Amaral, traduz o dever de obediência como a “obrigação do subalterno cumprir as ordens e instruções dos seus legítimos superiores hierárquicos, dadas em matéria de serviço e sob a forma legal[1], que aponta os principais requisitos para que o dever de obediência se encontre presente e seja efetivo, sendo os mesmos:

Ø  Que as ordens ou instruções provenham do órgão competente, ou seja, o legitimo superior hierárquico (e não de um qualquer outro superior hierárquico);

Ø  Que essas ordens ou instruções incidam sob matéria de serviço;

Ø  E que essas ordens ou instruções observem a forma legalmente prevista (normalmente, por escrito, não podendo ser dadas mediante comando meramente oral).

 

Princípio da Legalidade Administrativa:

De seguida, apresento um conceito estruturante, que virá a revelar-se de grande relevo, à medida que avanço na temática do dever de obediência a que o subalterno está vinculado, sendo este o Princípio da Legalidade Administrativa.

Este princípio fundamental, é consagrado legalmente no nº 2 do artigo 266º CRP, que estipula que “Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé” e no nº 1 do artigo 3º do CPA, que estabelece que “Os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes foram conferidos e em conformidade com os respetivos fins”, preceito este que, na visão do Prof. Marcello Caetano se traduz em “nenhum órgão ou agente da administração pública tem a faculdade de praticar atos que possam contender com interesses alheios senão em virtude de uma norma geral anterior[2], o que revela uma espécie de proibição que estipula uma barreira à atuação da Administração Pública, salvo com base na lei.

Segundo o entendimento do Prof. Paulo de Otero, “O estudo realizado em torno da disponibilidade do poder administrativo permitiu vislumbrar que, por efeito de intervenção do poder hierárquico, se pode assistir a uma debilitação do principio da legalidade da competência, transformando o exercício da competência do órgão subalterno num processo mediato de concretização da vontade decisória do superior hierárquico através das ordens que emana e relativamente às quais aquele se encontra adstrito a um genérico dever de obediência[3], o que se mostrará basilar aquando da abordagem do dever de obediência a ordens ilegais.

 

Correntes Doutrinárias, relativas ao Dever de Obediência face a Comandos Ilegais:

Neste domínio, manifesta-se a necessidade de abordar a questão central do dever de obediência a que o subalterno se encontra vinculado, que se caracteriza como uma questão fonte de divergências doutrinarias, não só em termos nacionais como internacionais, que é a questão de saber se o subalterno deve ou não obedecer a ordens ilegais, proveniente do seu legitimo superior hierárquico e, através da análise desta problemática, será possível compreender que, efetivamente, “Na intenção está o valor da ação”.

Como foi anteriormente revelado, o dever de obediência não se encontra verificado em todas as circunstâncias, contudo quando todos os requisitos base se encontram preenchidos, como são seus exemplos, a ordem ou instrução emanar do legitimo superior hierárquico, seja dada em matéria de serviço e revista a forma legalmente exigida, o dever de obediência existe e deve ser respeitado, como estipula o nº 8 do art.º 73 da LGTFP.

Contudo e, não obstante aos factos anteriormente apresentados, demonstra-se como essencial saber até que ponto é que esse dever se estende e o que acontece ao mesmo, no caso de a ordem dada pelo legitimo superior hierárquico se verificar como intrinsecamente ilegal – existem 2 corrente com base neste tópico.

Ø  Corrente Hierárquica:

Corrente ideológica seguida por juristas como Otto Mayer, Nézard e Marcello Caetano, que defendem que existe sempre dever de obediência, uma vez que não é da competência do subalterno interpretar ou questionar a legalidade das ordens a ele transmitidas.

Contudo e meramente em casos excecionais de dúvidas fundadas, o subalterno pode exercer o direito de respeitosa representação (apresentar as suas duvidas sobre a legalidade daquele comando hierárquico), junto do seu superior, tendo que, de seguida, obedecer à ordem uma vez mantida ou confirmada pelo seu superior.

Ø  Corrente Legalista:

No polo oposto temos a corrente legalista, que vigora no ordenamento jurídico, ainda que de forma mitigada, a qual não se demonstra como tão rígida como a anteriormente abordada e que, segundo a concessão do Professor Fritas do Amaral, se refugia no Princípio de Estado de Direito Democrático e no Princípio da Subordinação da Administração Pública à lei, este último patente no nº 2 do art.º 266 CRP.

Nesta corrente doutrinária, verificam-se exceções ao dever de obediência nos nº 2 e 3 do art.º 271 CRP, que estipulam, respetivamente, “É excluída a responsabilidade do funcionário ou agente que atue no cumprimento de ordens ou instruções emanadas de legitimo superior hierárquico e em matéria de serviço, se previamente delas tiver reclamado ou tiver exigido a sua transmissão ou confirmação por escrito” e “Cessa o dever de obediência sempre que o cumprimento das ordens ou instruções impliquem a prática de qualquer crime”.

Esta corrente tem como alguns dos seus apoiantes Orlando e Santi Romano, João Tello de Magalhães Collaço e até mesmo o Prof. Freitas do Amaral, numa visão mais moderna.

Esta tese consubstancia a ideia de que a lei é superior a tudo e a todos, inclusivamente, ao superior hierárquico, o que é atestado pelo Prof. Freitas do Amaral, ao expor que “acima do superior está a lei, e entre o cumprimento da ordem e o cumprimento da lei o subalterno deve optar pelo respeito à segunda[4].

Nestes termos, estamos perante um contexto de supremacia da lei, e, como tal, se estiver em causa algum caso de ilegalidade, não existe dever de cumprir a ordem, podendo também aplicar-se em casos em que a ordem provenha de um ato nulo, como expõe o nº 1 do art.º 162 do CPA.

Num contributo doutrinário, o Professor Vasco Pereira da Silva, cré que o dever de obediência deve cessar, nas circunstâncias em que estejam em causa direitos fundamentais e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

 

Cessação do Dever de Obediência:

Após estas breves, mas esclarecedoras considerações, acredito que seja relevante exprimir que, na ordem jurídica portuguesa, vigora o entendimento de que o dever de obediência não é absoluto e cessa em determinadas circunstâncias, como são seus exemplos, a não observância dos requisitos do nº 8 do art.º 73 da LGTFP, além de “cessar o dever de obediência sempre que o cumprimento de um comando hierárquico conduz á prática de um crime[5], como se encontra explicito no nº 3 do art.º 271 da CRP e no nº 5 do art.º 177 da LGTFP.

Contudo e não obstante aos factos anteriormente mencionados, esta cessação do dever de obediência apenas se revela nos casos em que o cumprimento dos comandos hierárquicos  resulte na prática de um crime (que possuem consagração legal no Código Penal), deixando de fora as circunstancias dessas ordens ou instruções, do legitimo superior hierárquico, resultarem em mera ilegalidade, sendo que “o funcionário ou agente que lhes der cumprimento só ficará excluído da responsabilidade pelas consequências da execução da ordem se antes da execução tiver reclamado ou tiver exigido a transmissão ou confirmação delas por escrito, fazendo expressa menção de que considera ilegais as ordens ou instruções recebidas[6], o que se encontra consagrado nos n.º 1 e 2 do art.º 177 LGTFP.

Esta ideologia é apoiada pelo Prof. Paulo de Otero, que explica “Significa isto que, pelo menos face à ilegalidade traduzível em actos puníveis criminalmente, não existe qualquer dever de obediência”, o que consubstancia a ideia de que o dever de obediência mantêm-se em relação a contravenções ou transgressões, alertando o professor para a necessidade de realizar uma interpretação restritiva do termo “crimes”, imortalizado no nº 3 do art.º 271 da CRP.

Em última análise é possível compreender que este dever de obediência não é absoluto e cessa perante situações de ilegalidade criminal, que resultam num ato nulo, preceito este que tem vários apoiantes, como são seus exemplos, García Enterría, Esteves de Oliveira, Garrido Falla, o Prof. Paulo de Otero e o próprio Prof. Diogo Freitas do Amaral.

Nestes casos de mera transgressão ou contravenção, ou seja, ilegalidades não criminosas, a falta de obediência é suscetível de gerar um ato de desobediência, contudo este incumprimento não costuma ser passível de originar responsabilidade criminal.

Em tom de conclusão, pretendo realizar uma última ressalva que, na minha ótica, se configura como cativante, sendo a mesma que “No entanto, em termos criminais, a lei não fala em legítimo superior, mas em autoridade competente (C.P., art.º 388º, nº1). Assim o crime de desobediência exige que a ordem tenha sido emanada de autoridade ou funcionário competente. Por outras palavras, a não obediência a ordens viciadas de incompetência nunca pode fundamentar crime de desobediência face ao Código Penal. Todavia, isto não determina a inexistência de dever de obediência a tais comandos. Em termos administrativos, tais comandos gozam de dever de obediência por parte dos subalternos, sob pena de sanção disciplinar[7], demonstrando que mesmo que a o superior não seja competente sobre a matéria em causa (ou seja, se existir um vicio de incompetência), o subordinado hierárquico tem que, mesmo assim, cumprir esse comando hierárquico, contudo, em caso de desobediência não culmina em crime de desobediência, consagrado no código penal, mas persiste a existência de uma sanção disciplinar.

 

Conclusão:

Com base em toda a informação apresentada, no âmbito da presente publicação, espero ter conseguido transmitir uma fração do conhecimento que obtive na sequência da pesquisa realizada acerca da temática do dever de obediência, a que o subalterno hierárquico se encontra vinculado, e em que situações esse mesmo dever é suscetível de cessar.

Culminando numa exposição sistemática que torço que se denote como da maior clareza, para todos os leitores que se encontrem interessados nas questões, por mim abordadas, de forma a compreender que é justamente “Na intenção que está o valor da ação”.


Diogo Miguel Santos
2º ano
Subturma 12
Aluno nº 64440

[1]  Cfr. D. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, I, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2021 reimpr., p. 667.

[2]  Cfr. M. Caetano, Manual de Direito Administrativo, I, Coimbra, Coimbra Editora, 1947.

[3]  Cfr. P. Otero, Legalidade e Administração Pública O Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade, Almedina, pp. 862 ss.

[4]  Cfr. Freitas do Amaral, Curso, I, p. 682.

[5]  Cfr. P. Otero, Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa, Coimbra Editora, p. 173.

[6]  Cfr. Freitas do Amaral, Curso, I, pp. 681 ss.

[7]  Cfr. P. Otero, Conceito e Fundamento, p. 170.

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