Natureza Jurídica da delegação de poderes

 

Natureza jurídica da Delegação de Poderes

 

Conceito de delegação de poderes

Primeiramente, parece relevante, começar por esclarecer o conceito de delegação de poderes, de modo a que de seguida seja possível analisar a sua natureza jurídica.

O Código do Procedimento Administrativo prevê no seu artigo n.º 44 a delegação de poderes, estabelecendo que esta consiste no ato através do qual um órgão administrativo normalmente competente para decidir sobre certa matéria, permite a outro órgão ou agente da mesma pessoa coletiva ou um órgão de diferente pessoa coletiva praticar atos administrativos sobre tal matéria, sempre que a lei o permita.

Marcelo Rebelo de Sousa, aponta três requisitos à delegação de poderes[1], sendo o primeiro, a vigência de uma lei que preveja a delegação de poderes, como se pode aliás retirar do n.º 2 do artigo n.º 111 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) – o n.º 4 do artigo n.º 229 da CRP prevê que o Governo da República e os Governos Regionais pratiquem atos de delegação de competências. O segundo requisito, é o da existência de dois órgãos, ou de um órgão e um agente da mesma pessoa coletiva pública, ou de dois órgãos de diferentes pessoas coletivas, sendo o órgão originalmente ou diretamente competente designado de delegante, e órgão indiretamente ou derivadamente competente designado de delegado. O terceiro e último requisito, é o da prática de um ato de delegação de poderes onde o delegante permite ao delegado que este atue em matéria do objeto da delegação. O autor refere que a delegação de poderes é um mecanismo de repartição de competência entre diversos órgãos da mesma pessoa coletiva pública, –fazendo ainda menção ao princípio da desconcentração, previsto no n.º 2 do artigo n.º 267 da CRP – ou, até mesmo entre órgãos de diferentes pessoas coletivas, tratando-se então de uma desconcentração em sentido impróprio e não de uma descentralização, pois, não existe uma delegação de atribuições. Sendo o principal objetivo em ambas as situações a aproximação da população e a desburocratização, o que consequentemente, resulta numa maior eficiência administrativa.

O autor distingue a delegação de poderes da transferência legal de competências ou desconcentração originária, referindo que a última resulta diretamente da lei, sem ser necessário o ato de um órgão administrativo, sendo esta definitiva, enquanto que, a delegação de poderes é precária, podendo ser revogada pelo delegante[2].

A delegação de poderes diferencia-se ainda, da substituição, da suplência e da representação[3]:

O caso da substituição ocorre quando, como consequência da violação de deveres funcionais por parte de um órgão de certa pessoa coletiva, um órgão de outra pessoa coletiva assume a sua competência, exercendo-a de modo a que os respetivos efeitos se reflitam na esfera jurídica da entidade substituída. A substituição tem como requisito, portanto, a ação ou omissão ilegal da entidade a substituir, resulta da lei e nesta situação tudo se passa como se o autor da conduta fosse a entidade substituída e não a substituta. Diferenciando-se da delegação de poderes, que, primeiramente não tem caráter sancionatório e, onde a atuação do delegado é do mesmo e não do delegante.

Já a suplência, verifica-se quando, na falta, impedimento ou vacatura de cargo, a lei preveja que outro titular assegure as respetivas funções de forma transitória. Ou seja, a suplência resulta diretamente da lei que prevê a designação transitória de um novo titular para o mesmo órgão, ao contrário do que se verifica na delegação de poderes, que resulta de ato administrativo e tem como requisito a existência de dois órgãos.

Por último, a representação supõe a existência de duas pessoas coletivas distintas e onde a atuação do representante se reflete na esfera jurídica do representado, como se o autor fosse o último. Na delegação de poderes, a competência delegada é exercida pelo delegado em nome próprio e não do delegante.

Natureza jurídica da delegação de poderes

Segundo Marcelo Rebelo de Sousa, existem quatro teses na doutrina portuguesa em relação à natureza jurídica da delegação de poderes[4], sendo a primeira tese a de André Gonçalves Pereira[5],– tese de autorização. Esta tese defende que a delegação de poderes corresponde a uma autorização, dada pelo delegante ao delegado, de exercício da competência já conferida pela lei de habilitação. Querendo, portanto, dizer que a lei de habilitação confere a competência a dois órgãos, ou a um órgão e um agente, e, o ato de delegação de poderes, ao autorizar o exercício da competência pelo delegado, resulta na existência de uma competência em simultâneo. Podendo tanto o delegante como o delegado exercer a competência, porém, após o exercício por um deles, o mesmo impediria que o outro interviesse em termos dispositivos, podendo somente revogar o ato do outro. Sendo, portanto, ilegal por vício de forma (por faltar um pressuposto objetivo prévio – o ato de delegação), a prática pelo delegado de atos no domínio legalmente abrangido pela delegação de poderes sem o ato prévio de delegação de poderes. Marcelo Rebelo de Sousa adianta que, esta tese não é compatível com o atual regime da delegação de poderes, pois, na realidade não existe em circunstância alguma uma competência simultânea de delegante e delegado, nem a possibilidade de um ato do delegado revogar um ato do delegante O autor indica os poderes de avocação e de revogação dos atos do delegado, reconhecidos ao delegante, como base para concluir que não existe competência simultânea nem revogabilidade dos seus atos pelos atos do delegado. O poder de dar ordens, instruções ou diretivas e o poder inspetivo, afastam também a ideia de que existe uma paridade nas posições do delegante e do delegado, após o ato de delegação, apesar do autor reconhecer que essa paridade de facto também não existe previamente ao ato de delegação, pois, nos termos da competência fixada por lei isso iria implicar que o delegado pudesse pedir ao delegante, delegação de poderes, situação que o autor não considera admissível.

A segunda tese referida por Marcelo Rebelo de Sousa[6], é a de Rogério Ehrhardt Soares[7], – tese da alienação unilateral da competência – que defende que a delegação de poderes é uma alienação unilateral da sua competência feita pelo delegante, que se traduz numa transferência do poder ou dos poderes delegados. Não podendo o delegante exercer a mesma competência depois de a delegar, com ou sem avocação, como, também não poderia revogar os atos que o delegado praticou. Segundo esta tese, a lei de habilitação não fixaria a competência do delegado, limitando-se somente a permitir que o delegante transferisse a sua competência para o delegado. Sendo, o ato do delegado sem prévia delegação de poderes ilegal por vício de competência (ou incompetência), pois, essa é transferida através do mesmo ato. Marcelo Rebelo de Sousa reconhece que esta tese também não deve ser acolhida pela lei portuguesa, pois, vai de encontro ao elenco de poderes do delegante, poderes como o de avocação de competências após estas serem delegadas, o de dar ordens, instruções ou diretivas, o de revogar os atos do delegado e mesmo o de revogar a delegação.

A terceira tese enunciada por Marcelo Rebelo de Sousa[8], é a de Diogo Freitas do Amaral – tese da transferência do exercício. Diogo Freitas do Amaral, distingue na competência a titularidade e o exercício. Nesta tese, o ato de delegação de poderes é o ato através do qual o delegante transfere para o delegado o exercício de um certo poder ou poderes funcionais. Permitindo a lei de habilitação tal transferência, mas não conferindo ao delegado qualquer titularidade da competência, mantendo-se então a titularidade na esfera do delegante, que nunca a transfere, transferindo apenas, o exercício da competência. Continua então, o delegante, a poder exercer os poderes que a lei lhe atribui, sendo um deles o poder de revogar a delegação de poderes que efetuou. O ato do delegado praticado sem um ato de delegação de poderes prévio seria ilegal, por incompetência, baseada na falta de capacidade para o exercício que o mesmo ato transfere. Marcelo Rebelo de Sousa objeta ao facto de, para se poder acolher esta tese ser necessário admitir que se pode exercer um poder sem dele ser titular. Admitindo que a titularidade sem exercício é admissível, já o contrário é inaceitável.

A quarta e última tese enunciada por Marcelo Rebelo de Sousa[9], é a de Paulo Otero[10], – tese da transferência de exercício com prévia titularidade simultânea do delegante e delegado. Paulo Otero considera que a lei de habilitação confere em simultâneo ao delegante o exercício e a titularidade de determinada competência e ao delegado a mera titularidade da mesma, ficando o exercício dependente de um ato de transferência – o ato de delegação de poderes. Podendo este ato ser caracterizado como uma autorização, cuja ausência, implicaria um vício de forma dos atos praticados pelo delegado, poderá também dizer-se que sem transferência de capacidade de exercício existe uma incompetência para a prática dos atos. Marcelo Rebelo de Sousa considera que esta tese choca com o regime legal de avocação e revogação, pois, este regime implica a não existência de uma competência simultânea e de revogabilidade dos atos do delegante pelo delegado através da competência em tese partilhada.

Para além das quatro teses já mencionadas, Marcelo Rebelo de Sousa refere ainda a sua posição[11], – tese da transferência da titularidade e de gozo de parte das faculdades contidas na competência. Para o autor a lei de habilitação confere apenas competência ao delegante e não ao delegado, mas, permite que o delegante, se lhe aprouver, transfira faculdades pertencentes a poderes funcionais englobados na competência ao delegado. Já o ato de delegação de poderes realiza essa transferência, que irá incluir tanto o exercício da competência como a titularidade da mesma. Mantendo o delegante, contudo, os poderes de avocação de competências e de revogação da delegação de poderes.

Analisa-se em seguida, a posição de Mário Esteves de Oliveira em relação à natureza jurídica da delegação de poderes[12]. Para o autor, a delegação de poderes ocorre quando existem dois órgãos competentes, porém, um deles, o órgão originariamente competente, ou seja, o delegante, pode exercer sempre tal competência, enquanto que o outro órgão – o delegado – só a pode exercer após se verificar uma condição suspensiva prevista na lei, que é o ato de delegação de poderes. Sendo, na sua opinião, o ato de delegação de poderes uma autorização, pois, é através do mesmo que o órgão sempre competente autoriza o outro a exercer determinada competência, e, só após este ato de delegação é que o órgão delegado a pode exercer. Mário Esteves de Oliveira, conclui que ambos os órgãos são titulares da competência, mas só um deles é que tem o poder de a exercitar, sendo o segundo capaz de exercitar tal competência somente após o ato de delegação de poderes. O autor recusa que a delegação de poderes consista numa transferência de competência do órgão delegante para o órgão delegado – isto porque, após o ato de delegação de poderes o órgão delegante continua a ser titular da competência, situação que não ocorreria caso existisse de facto uma transferência de competências.

Analisa-se por fim, a posição de Marcello Caetano em relação à natureza jurídica da delegação de poderes[13]. O autor defende que as competências pertencem a órgãos ou a cargos e não a pessoas titulares, e, ainda, que são estas competências que definem os cargos em si. Ora, visto que estas competências definidoras resultam da lei, não é da competência dos órgãos dispor, alienar, ou transmitir a outrem, as mesmas, porque, dessa forma estariam a ir contra a vontade expressa na lei de modo a prosseguir uma vontade particular. Logo, em matéria de delegação de poderes não pode existir uma transferência de competências por mera vontade de um particular, esta terá sempre de resultar da lei. O ato de delegação de poderes consiste num ato através do qual um órgão normalmente competente, autoriza outro órgão ou agente, indicados por lei, a exercitar tais competências. Marcello Caetano defende então que a natureza jurídica da delegação de poderes é a de autorização.

Conclusão

Assim sendo, após realizar a análise das diferentes posições doutrinárias em relação à natureza jurídica da delegação de poderes, parecerá coerente defender a posição de Marcelo Rebelo de Sousa, que defende a tese da transferência da titularidade e de gozo de parte das faculdades contidas na competência, significando portanto, que a lei de habilitação não confere ao delegado quaisquer competência, mas, confere ao delegante não só determinada competência, como permite que o mesmo transfira para o delegado faculdades incluídas nessa competência. Enquanto que o ato de delegação de poderes realiza tal transferência para o delegado, transferência esta que inclui tanto a titularidade da competência como o seu exercício. Contudo, esta transferência não altera o facto de na esfera do delegante se manterem os poderes de avocação de competências e de revogação do ato de delegação de poderes.

Mónica Ortiz
2º ano, turma B, subturma 12
Nº de aluno: 64681

[1] Crf. Marcelo Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo Volume I, LEX Editora, Lisboa, 1999, p. 193 e p. 194

[2] Crf. Marcelo Rebelo de Sousa, ob.cit., p.194 e p.195

[3] Crf. Marcelo Rebelo de Sousa, ob.cit., p.195 e p.196

[4] Crf. Marcelo Rebelo de Sousa, ob.cit., p.204

[5] Crf. André Gonçalves Pereira, Da delegação de poderes em Direito Administrativo, Coimbra Editora, Coimbra, 1960

[6] Crf. Marcelo Rebelo de Sousa, ob.cit., p. 205

[7] Rogério Ehrhardt Soares, apud

[8] Crf. Marcelo Rebelo de Sousa, ob.cit., pp. 205-207

[9] Crf. Marcelo Rebelo de Sousa, ob.cit., p. 207

[10]  Crf. Paulo Otero, A competência delegada no direito administrativo português, Lisboa, 1982

[11] Crf. Marcelo Rebelo de Sousa, ob.cit., pp. 207-210

[12] Crf. Mário Esteves de Oliveira, Direito Administrativo Volume I, Livraria Almedina, Coimbra, 1984, p. 268

[13] Crf. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo 10ª edição Tomo I, Coimbra Editora, Lisboa, 1973, pp. 226-230

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