Análise do Acórdão nº 956/18.7BESNT

Análise do Acórdão nº 956/18.7BESNT 


    Neste trabalho proceder-se-á à análise do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 21 de Novembro de 2019, processo nº 956/18.7BESNT, ao longo da qual serão desenvolvidas as diferentes problemáticas relacionadas com o Direito Administrativo, nomeadamente a delegação de poderes, a competência e a nulidade. 

    O acórdão em apreço trata uma ação interposta pelo Ministério Público no âmbito de uma decisão em matéria de coimas e contraordenações, tomada pelo Vereador da Câmara Municipal de Sintra ao abrigo de uma delegação de poderes concedida pelo Presidente da Câmara, matéria esta pertencente ao Presidente da Câmara nos termos do artigo 98º nº10 do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação e do artigo 35º nº2 alínea l) da Lei nº75/2013. O tribunal de 1ª instância decidiu pela incompetência deste ato sendo este, consequentemente, nulo. Esta decisão foi alvo de recurso de modo a aferir a efetiva competência delegada do Vereador e averiguar a adequação da invalidade que lhe foi aplicada. 

   Neste sentido, importa analisar o conceito e o regime da delegação de poderes que é regulada genericamente na Parte II capítulo IV do CPA. Assim, a delegação de poderes consiste no “ato pelo qual um órgão da Administração, normalmente competente para decidir em determinada matéria, permite, de acordo com a lei, que outro órgão ou agente pratiquem atos administrativos sobre a mesma” [1], conforme consta no nº 1 do artigo 44º do CPA. Compreender-se-á que, para poder existir a delegação de uma determinada competência, o órgão delegante terá de ser titular da matéria em que incide o ato de delegação. 

   Originariamente, a delegação de poderes destinava-se unicamente a órgãos dentro da mesma pessoa coletiva tendo expandido a sua abrangência com a alteração do CPA, aprovada pelo Decreto-lei nº4/2015. Deste modo, a delegação de poderes pode dar-se, atualmente, entre órgãos de pessoas coletivas autónomas entre si, não sendo necessário que o delegante e o delegado se insiram na mesma pessoa coletiva [2]. Neste caso, a delegação opera entre o Presidente da Câmara Municipal e o Vereador que se inserem na mesma pessoa coletiva, isto é, o município que, por sua vez, se insere na administração autónoma do Estado.  

   A delegação de poderes é essencialmente um ato permissivo [3] fundado em considerações subjetivas de confiança do delegante no delegado e que, para ser válido, tem de obedecer a determinados requisitos que constam do artigo 47º do CPA. Assim, a delegação tem de ser feita por via de uma lei de habilitação, isto é, uma lei através da qual se atribui ao órgão delegado a competência para a prática de determinado ato [4], na qual deverá constar a identificação do órgão delegante e do órgão ou agente delegado (elementos subjetivos da delegação), bem como a identificação expressa e clara dos poderes efetivamente abrangidos pela delegação, não podendo esta interferir no âmbito das competências insuscetíveis de delegação e que estão elencadas no artigo 45º do CPA. Além disso, nos termos do número 2 do mesmo artigo estes atos estão ainda sujeitos a publicação que, na falta de disposição legal especifica, deve ser feita no Diário da República ou por publicação oficial da entidade pública. De sublinhar que este ponto foi focado diversas vezes ao longo do acórdão e se apresenta como um fator decisivo no processo de aferir a competência do Vereador. 

   A importância desta questão reside na inadmissibilidade de delegações genéricas ou tácitas, isto é, um ato de delegação que considera delegados determinados poderes ainda que não estejam expressamente identificados. De facto, esta é a posição da maioria da doutrina, nomeadamente do Professor Freitas do Amaral, bem como da maioria da jurisprudência. Existem, porém, alguns autores, entre os quais João Caupers, que admitem a existência de delegações tácitas não considerando imprescindível um ato jurídico que enumere exaustivamente as competências delegadas.  

   A doutrina citada no acórdão, nomeadamente Mário Esteves de Oliveira e Fernanda Paula Oliveira, vai de encontro à posição maioritária que considera as delegações tácitas como atos ilegais remetendo, por um lado, para a necessidade de clarificar as competências delegadas nos termos do artigo 47º do CPA e, por outro, para a impossibilidade de delegar a globalidade das competências, como consta do artigo 45º alínea a) do CPA.   

   Desta forma, a legalidade e a eficácia do ato praticado ao abrigo da delegação de poderes, depende da validade desta última e deve igualmente obedecer aos requisitos formais anteriormente referidos, como a identificação da lei ao da qual o ato é praticado e a referência dos órgãos delegante e delegado (nº 1 do artigo 48 do CPA). Ora, no caso em análise, a lei de habilitação cometida pelo Presidente da Câmara ao Vereador, ainda que cumprindo todos os requisitos formais, não fazia referência expressa à matéria das coimas e contraordenações sobre a qual versou a decisão do Vereador o que, tanto pela importância da matéria como pela omissão do ato de delegação, levaram o tribunal a reiterar a incompetência do Vereador para tomar decisões nesta matéria. 

   Decidida a questão da competência, resta aferir o desvalor que será aplicado ao ato praticado ao seu abrigo. De facto, como verificámos anteriormente, o Presidente da Câmara e o Vereador inserem-se na mesma pessoa coletiva de modo que estamos perante uma incompetência relativa, isto é, a interferência de um órgão nas competências de um outro órgão que pertence à mesma pessoa coletiva. Por regra, a invalidade subjacente a um ato praticado no âmbito da incompetência relativa culmina na sua anulabilidade nos termos do artigo 163º/1 do CPA, sendo a anulabilidade a regra geral aplicável em Direito Administrativo. Porém, a matéria das coimas e contraordenações, pelo seu carácter punitivo, é facilmente transposta para o âmbito do Direito Penal de modo que seria justificável, neste sentido, a aplicação de um desvalor mais gravoso, tendo o Tribunal optado, com este fundamento e no sentido de decisões anteriores tomadas em casos análogos, pela nulidade do ato praticado. Ora, contrariamente ao que se verifica no regime da anulabilidade, a nulidade tem eficácia retroativa, isto é, abrange todos e quaisquer efeitos que tenham sido produzidos ao abrigo do ato anulado sendo que, nos termos do artigo 163º nº 2, os efeitos do ato anulável podem ser retroativamente destruídos se este ato vier, por decisão judicial, a ser anulado. 

    Em síntese, o acórdão trata essencialmente de matérias relativas à delegação de poderes e, mais especificamente, da validade dos atos praticados ao abrigo do ato de delegação. Desta análise é possível extrair a relevância dos requisitos formais inerentes ao ato de delegação, bem como a necessidade de clareza do seu conteúdo, de modo a evitar a ambiguidade das disposições, das quais poderão resultar invalidades, como ocorreu no caso que temos vindo a analisar. 



Acórdão disponível em: http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/5acc00c01c55d8448025861d004388b8?OpenDocument



Inês Valério Ribeiro

Nº 64805

Subturma 12


[1] DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Coimbra, Almedina, 2016, p. 694 

[2]  Cfr. ANDRÉ SALGADO DE MATOS, “A delegação de poderes“ in CARLA AMADO GOMES, et alComentários ao Novo Código de Procedimento Administrativo, Volume I, 2018, AAFDL Editora, p. 424 

[3] A delegação de poderes, ainda que seja um ato nuclearmente permissivo, tem também um efeito impositivo, já que, em seu resultado, por força da irrenunciabilidade e da inalienabilidade da competência, o delegado não apenas passa a poder, como fica juridicamente obrigado a exercer a competência delegada.”  ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Comentários ao... , ob. cit. p.426 

[4] Vide JOÃO CAUPERS, Introdução ao Direito Administrativo, 2009, Âncora Editora, p. 162 e DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito..., ob. cit. pp. 699 - 700 


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